Fiel da Balança 2020

Na frigideira, tapada pela cobertura de proteção de calor de micro-ondas, a guarnição está mole. As natas, já frias, solidificam por dupla via: o processo químico e a sensação de abandono. A carne, essa, vai ficando dura à medida que se vai lembrando que já devia ter alimentado alguém. A porta abre devagar, percebe-se que houve cuidado com a introdução da chave na fechadura. Quem entra quer ser notado, mas não se quer fazer notar. É a dualidade de critérios de quem chega por último: quer ser esperado, mas odeia fazer esperar. Fá-lo na expectativa que um dia possa ser o primeiro, abrir a porta com estrondo, queimar os dedos enquanto prepara a guarnição, salpicar-se com as natas ainda frescas e vigorosas, sorrir para a carne quando, cortada ao meio, se vê ainda com sangue, num estado mal-passado imposto por quem finalmente passou (por quatro ou mais anos de luta). Na cama, as crianças dormem ainda com a luz de presença, naquela semi-embriaguez de sono que só passa com o aconchego dos cobertores e o conforto de um beijo de até-amanhã. Na divisão ao lado, o sofá sente-se confortável, ocupado por um cônjuge que vai dividindo a atenção entre a televisão, o telefone e o silêncio profundo da expectativa de ouvir ruído - de uma porta, como se as portas fossem causa de alegria, e não quem as abre. Quem se anuncia é o trabalhador-estudante: uma espécie de mista de carne de um menu barato; mista porque não sabe bem se é trabalhador ou se é estudante, de carne porque o corpo lhe pesa no final do dia. Encontra-se na fase crítica, a das difíceis decisões, a que tem consequências a longo prazo não imagináveis para quem com ele não partilha a condição: há que dividir a atenção entre quem o espera e quem dele espera. A primeira, corporizada pelo conceito de família, só pede atenção e dedicação; a segunda, corporizada pelo conceito de escola, só pede o mesmo. Precisava o protagonista de se multiplicar, de ser ele mesmo à potência de dois, de poder ser trabalhador e estudante - não trabalhador ou estudante. E é nesta luta inexorável contra o tempo, que por mais força que faça não estica, não perdoa, não se mostra flexível às súplicas, que vai vivendo, uma dicotomia que lembra Ricardo Reis e Álvaro de Campos, entre a quietude da Família e o frenesim da Academia.

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