Quadrante 15

Publicação animada

Índice

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Editorial

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Paragem Jacarandá: Quem Tem Medo de Ser Artista?

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Rita Borralho Silva

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Sobre as Roupas Novas do Imperador

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A Arte da Existência não vivida

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Catarina Gentil

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Questões de modernidade na actual pintura portuguesa

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Arte Atemporal

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Spiderland, Slint (1991)

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Entrevista - Professor António Feijó

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João Francisco Correia

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Ficha Técnica

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Entrevista a Padre João Sarmento,SJ

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Leonor Neves

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A Mediatização do Crime Praticado Contra Crianças e o Fortalecimento do Pensamento Retributivo

Editorial

Nas páginas que se seguem oferecemos uma ideia de Universidade, algo que é inevitavelmente constituído por pessoas e coisas particulares, onde conversas com colectivos artísticos sobre jams musicais convivem com as reflexões de um Padre sobre a afinidade entre a arte e a fé. Na mesma rua, ou na mesma alameda, os ensaios de Direito Penal dividem casa com experiências pictóricas de linhas que sugerem paisagens e de fotografias que escondem pessoas. Ao invés de reduzirmos o estudante a uma alínea pré-laboral, as páginas desta nova edição apresentam um espaço de liberdade que sublinha a abundância que cada pessoa transporta. A resposta que encontramos quer para o afunilamento da Universidade quer para o pretenso perigo de robots que escrevem e desenham, restringe-se ao pensamento, a uma Universidade habitada por pessoas que pensam - e isto já é alguma coisa. Eis a terceira edição. Que continue - assim.

Neste número, decidimos identificar os autores somente pelos nomes, retirámos da sua assinatura o peso dos locais onde estudam e trabalham.

Equipa Editorial: Noa Brighenti, Rodrigo Cruz Silva, Salvador R Cavaco

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JACARANDÁ

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Paragem Jacarandá: Quem Tem Medo de Ser Artista? por Noa Brighenti

Ao longo da minha estadia nas Gargantas Soltas tenho escrito muito sobre educação: tanto sobre os cursos científico-humanísticos do ensino secundário como sobre o ensino superior — falei deles por serem aquilo que conheço e por nunca me ter parecido haver na prática, uma outra via, por mais que a pudesse querer. Sem me aperceber, estabeleci uma hierarquia escolar e com ela fui eliminando opções melhores que aquela que acabei por escolher para mim — ou, pelo menos, diferentes. Foi ao entrar nas Jacarandá Sessions que dei de caras com quem quebrou estas barreiras e teve a coragem de escolher um caminho seu em vez de escolher, para si, o caminho de outros. Hoje, venho falar-vos desta outra perspetiva: do Coletivo Artístico Jacarandá e de dois dos seus sete membros, António Pinto e Xavier Lousada, para quem os cursos artísticos especializados foram a única via. Assim, vamos ao que interessa. Este encontro ocorreu numa segunda feira à noite no Bus - Paragem Cultural, onde o Coletivo tem a sua base, e onde nos sentámos a conversar, rodeados de instrumentos que esperavam a Jacarandá Session do dia seguinte.

Como a maçã cortada em fatias (não sei se se diz fatia ou gomos — para a Sofia são gomos, mas não me faz muito sentido): pego na maçã e na faca e corto a maçã com a faca e a maçã deita sumo e ponho um lenço por baixo e as minhas amigas gozam comigo porque deixo tudo sujo e depois roubam as fatias que cortei e dizem que quem corta maçãs são os miúdos pequenos e eu não as oiço — maçã fatiada sabe melhor. Se se diz maçã fatiada é porque são fatias e não gomos. A Sofia não ficou convencida com este argumento, foi procurar à internet. A Marta chegou e disse “gomos são para as tangerinas e laranjas”. A Sofia perdeu. Chega Maio e ninguém quer estudar e podemos passar horas a discutir como se devem ou não dizer as palavras, mesmo que os exames estejam à porta; afinal chegou Maio e com ele chegou o sol e podemos fingir que não estamos fechadas no mesmo edifício horas a fio em busca de questões doutrinárias escritas por professores de peito cheio. Este ano, com Maio, chegaram também as Jacarandá Sessions no Bus - Paragem Cultural e, com elas, Maio continuou a existir durante o resto do ano: todas as terças-feiras, de duas em duas semanas, numa cave sem luz natural. Mas está lá, eu juro.

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artísticas? António: No início, o Coletivo tinha uma forma diferente de funcionar. Quem o pensava e fazia acontecer eram a Vera, o Francisco e a Beatriz Felício e os três saíram de Portugal com o final da Pandemia. Acho que acabou também por ser uma consequência de termos sido alunos da Escola Artística António Arroio: fomos sempre muito abertos a pensar as Artes como um conjunto; afinal, este é um mundo que consegue ser um pouco agressivo e onde temos de nos defender e este acabou por ser o nosso mecanismo de defesa. Xavier: Desde as Zaratan Sessions que o Coletivo queria crescer e a Vera — fotógrafa — também queria expor o seu trabalho. Isso fez com que, com ela, nos virássemos para outros caminhos. O mundo das Artes é uma rede gigantesca em que todos precisamos uns dos outros e não é justo os músicos só darem plataforma a outros músicos. Da pouca experiência que temos, por exemplo, enquanto Península — que tem um ano de projeto — fizemos já várias colaborações com outras áreas artísticas, basta pensar no designer que nos faz as capas. O que vos influenciou a escolher seguir uma carreira na música? Sentem que a escola vos empurrou neste sentido? António: Quando eu fui para a Escola Artística António Arroio estavam a passar-se muitas coisas na minha família, foi também quando comecei a ganhar interesse pela música. Ver o meu avô doente a tocar piano despertou algo em mim. Antes até estava mais interessado em Cinema e ia comprar uma câmara mas acabei por comprar um baixo. A escola nunca me empurrou nesse sentido, antes pelo contrário, faltava-lhe dinâmica. Xavier: O programa musical da escola é horrível. A partir do momento em que compras um instrumento na papelaria está tudo estragado.

Quem são os Jacarandá? António: Neste momento somos um grupo artístico composto por sete pessoas: eu, o Xavier Lousada, o João Coelho e o António Santos (que fazem parte da banda Península), o designer João Vouga e a Matilde Bicudo, responsável pelas redes sociais. Como nasceu o Coletivo Artístico Jacarandá? António: O Coletivo começou durante a Pandemia quando a banda, da qual fazia parte, os Zaratan, ficou sem chão; tínhamos inclusive um álbum que acabou por nunca chegar a sair. Nessa altura conseguimos através da Vera Machado da Costa — que namorava com o Francisco Lomba, um dos membros — chegar ao dono do Village Underground e vimos a oportunidade não só de lá trabalhar esporadicamente mas ainda de fazer as Zaratan Sessions. O Village precisava de um novo evento que trouxesse público jovem e acabámos por lá ficar até Dezembro de 2020 quando chegou a segunda vaga de COVID-19. Quando saímos daquele espaço, a V e o F começaram a pensar no conceito do Coletivo. O objetivo foi, desde sempre, criar uma plataforma para artistas que não tinham essa capacidade: ajudá-los a crescer. O que são as Jacarandá Sessions? Xavier: As Jacarandá Sessions são jam sessions organizadas pelo nosso Coletivo que se distinguem das restantes por, no início de cada edição, podermos assistir ao concerto de um artista local com as suas peças originais, o que faz com que estejam sempre a aparecer novos núcleos trazidos por esse mesmo artista. Depois, são organizadas dez jams de sete minutos em que todos são convidados a vir tocar e a tocar qualquer estilo musical.

Inicialmente, o Coletivo estava mais ligado à música. Porquê expandi-lo para outras áreas

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áreas artísticas e novos espaços, produzir mais conteúdos digitais também.

Falta contextualização: antes de começar a produzir temos de consumir coisas artísticas e quando aprendemos música na escola não nos dão o que ouvir: dão-nos uma flauta e ensinam nos a ler pautas e pronto, tocamos o titanic até ao final do ano — essa é a educação musical. Só serve para dizer que existe. Em que pensam que se deveria focar o ensino artístico? Numa vertente mais técnica ou mais emocional? Xavier: Os dois, mas só quando se tem o sentido emocional é que se procura a técnica. A Arte está completamente ligada às emoções e isso não nos é ensinado na escola, a menos que se vá para a António Arroio ou para a Soares dos Reis. Na António Arroio, no primeiro ano, passamos por todos os cursos e só no ano seguinte escolhemos para onde ir, e isso é fundamental, porque só aí temos um contexto das várias hipóteses e podemos realmente fazer uma escolha. E, quando a fazemos, a nossa cabeça tem tantas novas referências que mais facilmente pensamos fora da caixa. António: Por isso é que existem conservatórios cheios de miúdos que perderam a paixão. O lado emocional é o que nos faz continuar, seja o que for: se quero desenhar um braço é porque tenho uma referência da qual me quero aproximar ou até destruir ou refazer. Também no nosso coletivo eu, por exemplo, adoro pintura, cinema, animação e inspiram-me para as coisas que faço. António: Quero mandar cá para fora. Continuar a criar. Fazer disto uma plataforma mais sustentável para muita mais gente. Enquanto jacarandá estamos agora associados ao Bus - Paragem Cultural e queremos crescer, ser mais um ponto de Lisboa que ajude novos artistas e que traga mais ideias à conversa: abranger novas No Coletivo, qual o vosso objetivo enquanto criadores?

Xavier: Um dos papéis da Arte é permitir-nos estar à vontade para exprimir aquilo que não queremos exprimir em palavras, e exprimi-lo de uma maneira que só nós percebemos. Hoje em dia somos muito controlados, as emoções estão distraídas com as redes sociais, etc — e a Arte permite-nos não ter medo das emoções fortes e evoluir enquanto pessoas. Da minha perspectiva bastante pessoal, o que me move é nós, enquanto artistas, estarmos unidos. Nesta área, somos bastante enganados e iludidos por soluções totalmente precárias e, de repente, termos conseguido criar um espaço — não muito grande — mas que dá a oportunidade a novos e a pequenos artistas de se apresentarem e saírem daqui com um dinheirinho no bolso e com uma noite agradável, é quase inimaginável. Xavier: Eu cresci num meio artístico bastante underground — do punk rock e etc — estando muita dessa malta envolvida em projetos associativistas, coletivos,... e muitos deles saíram da cidade e foram viver para o campo. Na cidade há um ambiente competitivo, parece que não há espaço para todos — o que é uma enorme ilusão; cada projeto é um projeto e mesmo que semelhantes nunca existem dois iguais. Já no interior, e Seia, que é o que conheço melhor, existe uma série de grupos e entidades independentes e eles procuram sempre trabalhar todos juntos para conseguirem chegar a um fim comum. Na cidade perde-se este objetivo: distraímo-nos com os nossos próprios problemas, com o stress. António: Mesmo assim, é bom, sendo artista, ter nascido na cidade. Estás mais exposto a coisas novas e há mais pessoas; acabas por ganhar uma maturidade diferente graças à abertura que a cidade Pensam que seja mais fácil crescer enquanto artistas numa pequena ou grande cidade?

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te dá. Vi muita gente vinda do interior com a ideia de que vão conseguir e depois chocam com a cidade, aqui as coisas são competitivas de uma maneira que não faz sequer sentido. Quando decidiram ser artistas? Não tiveram medo? Xavier: Durante muito tempo tive muitos complexos ao pensar no tipo de vida dos músicos. Ao estudar música, ouvimos que a vida de artista é difícil, que temos de nos esforçar e que mais vale (ir) estudar outra coisa. Os meus pais apoiaram-me, isso nem foi um problema, o problema estava em mim próprio por não acreditar na minha capacidade para singrar neste meio. Temos de estar preparados para a vida como artistas porque ela está sempre a dar-nos chapadinhas e temos de estar sempre a aguentá las; há meses em que não encontro trabalho e depois no mês seguinte tenho uma série de concertos marcados. Não consigo convencer a minha cabeça a trabalhar num nine-to-five enquanto aqui trabalho dentro de um espaço com um sistema por si já alternativo e com pessoas que me apoiam. António: Sempre fui aluado e quando era mais novo tinha algumas inseguranças em relação às minhas capacidades. Foi ao virar-me para a Arte que descobri algo em que era bom, que conseguia fazer, e atirei-me de cabeça sem pensar duas vezes. As artes deram-me um propósito e pensei que mais valia fazer algo de que realmente gosto, por mais que isso implique viver numa situação precária. Temos de ser felizes com o que fazemos na vida, e viver em harmonia com o que queremos ir fazendo: hoje posso ser músico e amanhã já não. Não podemos ter medo de arriscar e isso é o importante. Compensa.

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Rita Borralho Silva

Scans - Scanning as a painting medium, 2022. (série). Scanned image

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Cegonha – Cegonha, 2022. Performance. Teatro KTO, Cracóvia

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A Arte da Existência Não Vivida

por Carlota Portugal Libreiro

mente do leitor. Este será, a toda e qualquer hora, interrompido por questões, raramente respondidas, que vão desde as que nos perseguem há séculos - “Porque é que criamos Arte?” -, às que marcam os nossos tempos - “Se a ação humana é predeterminada, então serão os nossos atos criativos mais nossos do que do computador, que as pessoas alegam pertencer ao programador e não ao computador?” Por sentir que se trata de uma área de mais difícil reprodução que a musical, confiro, sem dúvida, maior interesse às áreas visuais. Aqui, o autor traça como ponto de partida o nascimento do programa AARON; escrito pelo artista e cientista informático Harold Cohen na tentativa de descobrir quais os requisitos mínimos necessários para criar uma imagem. O objetivo único deste programa era o de reproduzir as ações humanas, nomeadamente a compreensão e recriação de imagens com estilos artísticos, como um pintor humano faria na tela. Para tal eram utilizadas diferentes máquinas, a fim de materializar as imagens que, posteriormente, seriam coloridas à mão por Cohen. Como este software não era de código aberto, o seu desenvolvimento terminou com a morte de Cohen em 2016, mas é inevitável questionar quem era o verdadeiro artista neste cenário. Por um lado, AARON não estava capacitado para aprender estilos novos além daqueles que lhe foram atribuídos por Cohen. Por outro, este

Haverá processo mais humano que o processo criativo? E quanto à Arte, quem detém o poder para a criar senão nós? A estas perguntas aditam se tantas outras, na procura de desconstruir um futuro que, na verdade, já se instalou. Em Código para a Criatividade, Marcus du Sautoy discorre sobre o que está por trás do ato criativo e por que razão lhe chamam a “última fronteira” da Inteligência Artificial. Para tal, o autor debruça-se sobre as conquistas auferidas pela inteligência artificial (IA) no mundo das artes visuais e musicais desde a segunda metade do século XX - com o nascimento da IA - até aos dias de hoje; tendo, ao longo deste período, a IA alterado drasticamente aquilo que há uns anos conhecíamos como processos criativos. Antes de 1949, os computadores podiam ser informados sobre o que fazer, mas não possuíam a capacidade para se lembrarem daquilo que já tinham feito. Hoje, vemos a IA não só como colaboradora dos criadores humanos, mas também como entidade criativa por si só. Nesse sentido, este livro é uma espécie de manual de iniciação para todos aqueles que querem saber de que forma é que a IA se faz “ouvir” e “ver” no mundo artístico. É uma obra destinada a leitores de todas as áreas e idades, pois além de possuir uma narrativa concisa e descomplicada, trata o futuro da forma de expressão que nos distingue do resto dos animais: a Arte. Marcus du Sautoy foge à doutrinação, seguindo um caminho de semeação de dúvidas na

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não se revelem bons artistas”. Não devemos, no entanto, esquecer que a Arte é, “em última instância, uma expressão do livre arbítrio humano”. Por conseguinte, “até os computadores terem a sua própria versão deste, a Arte criada por um computador será sempre associada a um desejo humano de criar.” É possível que a nossa tão pouco modesta aversão à arte criada com recurso a Inteligência Artificial nasça da coletiva aflição de nos tornarmos banais. Sem a arte, o que nos diferencia dos outros animais? Ou melhor, o que nos diferencia das máquinas, desprovidas de consciência e inteligência emocional? Ansiamos por fazer da nossa existência um acervo de significados na esperança de ter a dor como catalisadora de um produto que acrescentará valor ao mundo, na forma mais humana de expressão. Não estamos prontos para assumir a nossa insignificância, fazendo brotar ao seu lado, por museus e galerias, a arte da existência não vivida. Não obstante, se pusermos um quadro numa parede ou colocarmos uma melodia a tocar e as pessoas se sentirem sensibilizadas ou comovidas, como podemos dizer que não se trata de Arte?

último dependia das composições feitas pelo seu programa, para fazer nascer as obras. Na verdade, Cohen descrevia a sua ligação com AARON como “semelhante à relação entre os pintores dos Renascimento e os seus assistentes”. Significará isto que os programadores são os novos artistas? E se outra pessoa carregar no botão “criar”, quem merece este título? No decorrer do livro, não é expresso em que lado da muralha se posiciona o autor, uma vez que a narrativa tem como sustento factos reais e não opiniões pessoais. O AARON foi o ponto de partida através do qual se colmatou falhas e iniciaram progressos para a criação de artistas cada vez mais autónomos. É com base nesses exemplos que o autor faz pender o seu discurso, visando definir não só quais os requisitos da criatividade, como também as premissas para definir algo como Arte. “O que é que confere valor às coisas?” - Poderá a objetividade de uma fórmula responder a esta pergunta, que nos atormenta desde de que há memória? O autor levanta a hipótese de, num futuro não muito distante, existir um algoritmo de aprendizagem automática capaz de “analisar os valores biométricos provindos do interior do nosso corpo, e calcular o impacto emocional que uma determinada música ou obra de arte tem em nós”. Com recurso a este processo, facilmente descobrimos que interruptores biométricos temos de ligar para produzir um “êxito global”. Teremos então aberto a caixa de pandora para a produção de arte excecional? Ainda que sem uma resposta exata, Marcus Du Sautoy apresenta duas possíveis visões. Ora, “se a beleza for totalmente subjetiva, e se o cliente tem sempre razão, então os algoritmos biométricos podem produzir a melhor Arte de todos os tempos”. Em alternativa, “se a Arte disser respeito a algo mais profundo do que as emoções humanas, devendo expressar uma qualquer verdade para lá das nossas vibrações bioquímicas, os algoritmos biométricos talvez

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Questões de Modernidade na Actual Pintura Portuguesa

por Levi Vermelho

também. Cada artista não fez mais do que tentar um vagoaperfeiçoamento, apurar uma técnica eleita ao grau de preferida, tratar a ideia central das suas preocupações ou somente um mote acidental ou preparatório. Pretendeu-se só, ao que parece, mostrar o que hoje se faz no domínio das artes plásticas e não, preparar com cuidados próprios de ante-estreia um original para ofertar liberalmente a um público ansioso. De forma que o público ficou na mesma. Apesar do ciclo de conferências, apesar de toda a boa vontade dos conferencistas, dos expositores e dos organizadores. Se o público estava já informado, esperava muito legitimamente que aquilo de que se informou evoluísse, se transformasse,caminhasse,progredisse.Seopúblico era de Domingo normalmente, ou de tardes de chuva por oportunidade, a exposição que os desvelos e carinhos dos impulsionadores pretenderam dotar de aspectos difusores, informadores, digamos propagandísticos, dissolveu-se na obscura noção de arte moderna, associada à conhecida mentalidade do homem que não gosta porque não percebe, é uma fraude, são todos ladrões, por aí fora, etc., até onde todos nós sabemos. Deste «statu quo» ninguém arredou pé e tanto foi assim que às conferências realizadas «in loco» seguidas de debate para esclarecer assistiram só aquelas pessoas que as perceberam, as aplaudiram, as criticaram, não manifestando o mínimo desejo de iniciação nem de aprofundamento. Donde se conclui que o problema não se pode resolver por si, mas depende de muitas mais coisas que, todas juntas, condicionam o próprio valor, significado, validade em suma, da arte que se faz.

Recuperamos um pertinente texto da 2ª edição da Quadrante, de 1959, onde se pensa sobre pintura.

Longínquos já os rumores duma Exposição Gulbenkian com ambiente de choque, conferências derecusados e problemas de sobrevivência, não adormeceram porém os artistas plásticos portugueses sobre os parcos, difíceis e incompreendidos louros conquistados, para isso tendo bastado convencerem-se de que não é de todo inútil continuar o esforço. Assim, ainda recentemente, viram abertas as portas da Sociedade Nacional de Belas Artes para aí realizarem a primeira exposição mais ou menos oficial de arte moderna. Mas, embora uma só, a exposição reflecte dois aspectos que convém assinalar. Primeiro o espaço, depois o tempo. Primeiro, a tradição quase hierática do salão, habituado às periódicas exposições de calendário inspiradas na renovação trimestral da face da natureza e gozando habitualmente de um acto solene de inauguração, a que não são alheias ainda as fitas de seda e as tesouras de prata. Depois, os longos anos de antiguidade que pesam sobre a designação primeiro salão de arte moderna» com todo o sabor da novidade acabada de inventar, com todo o perfume de tintas recentes, todo o entusiasmo da ideia nova que é necessário impor, à custa de penosas derrotas nas hostes renitentes do antigo. E lá vieram todos (ou quase todos) os que nos habituaram já em exposições anteriores, individuais ou de pequeno grupo, a formular uma demonstração quase matemática pela qual se prova que em Portugal se faz pintura moderna e escultura

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tempo que demora a correr, ou que é somente inválida porque esse tempo ainda não correu. E queremos chamar a atenção do leitor para alguns casos que podem servir de paradigma. A arte mexicana contemporânea, por exemplo, é incontestavelmente válida. E é nacional porque é válida em relação ao povo que eloquentemente exprime e é moderna porque reflecte o homem não só na sua dimensão espacial mas também na do tempo. O expressionismo vigoroso de Rivera e Orozco é um ponto de fidelidade ao sítio e ao momento, com mérito na eleição da forma artística definidora da mentalidade exacta. Também a pintura japonesa é outro exemplo que pode ser elucidativo. Moderna porque do seu tempo, autêntica porque moderna e afinal válida porque autêntica, reflecte a mentalidade quase infantil do homem japonês, balõezinhos de cor, papagaios de papel, casinhas de madeira e lendas nos bosques misteriosos dos sopés do Fu-Jiama. A pintura aparece linear, simples, agradavelmente colorida como cromos ou iluminuras medievais. Nela está o Japão, o homem, a sociedade, o tempo. O problema assim posto parece não ter outra solução que não seja aconselharmos os nossos artistas, a bem da coerência, a apagar da memória as lembranças do moderno. E até porque este moderno vem sendo, em Portugal, objecto de uma recepção quase intemporal, não se atendendo muitas vezes a ordens lógicas de precedência dos problemas estéticos tal como eles foram surgindo à consciência dos artistas através dos diversos movimentos pictóricos que integram a dita fase moderna das artes plásticas. Assim, quando a evolução para o abstracto se faz desde os estudos de Constable e Turner sobre a paisagem, passando pelas preocupações sobre os efeitos instantâneos da luz nas formas dos objectos, gratas aos impressionistas; pelas reacções de Cézanne e Seurat contra estes últimos no estudo aprofundado das formas da esfera, cilindro e cone e traçado de linhas verticais, horizontais e angulares; pelas «Demoiselles d'Avignon» de Picasso que, juntamente com Braque, iniciou o movimento

Qual é esse problema, afinal? Traduz-se com simplicidade na complicada fórmula do desajustamento dos tempos. Verificada a inexistência de actualidade em Portugal, onde os movimentos artísticos são recebidos anos depois, numa época e numa sociedade que não são aquelas sob cujos imperativos esses movimentos surgiram, e sendo eles próprios modernos pelo simples facto de se- rem do seu tempo, aproximamo-nos da conclusão quase absurda de que a arte moderna que actualmente se faz em Portugal deve ser tão inválida como a antiga. Se esta última viu já logicamente ultrapassados os seus fundamentos por razões não só estéticas mas ainda assim sociais, também o futurismo não pode ter significado fora do ambiente duma revolução industrial (caso italiano em 1914), nem o surrealismo alhear-se das premissas sociais que o justificam como descoberta nas regiões subconscientes de mundos estranhos e tentaculares, nem o geometrismo ter valor num meio social abertamente casado com a emoção instintiva. E o facto é que Portugal não conhece ainda o clima específico da industrialização, não possui estímulos para a tomada de posição sur- realista e integra uma sociedade essencialmente emotiva e arrebatada, aliás inclinada para centros de interesse em que o nível artístico e a maioridade intelectual deixam bastante a desejar. Que nos restará, afinal? Lamentar o tempo perdido, a nossa aflitiva atemporalidade? O que é que do moderno é válido em Portugal? Se a arte se estriba fundamentalmente para o efeito de críticas externas contra a validade no reflexo que pretende ser da sociedade em que se gera, como pode uma sociedade ultrapassada pelo tempo ver-se reflectida em obras que se afirmam modernas? Serão estas obras meras aspirações ao éden da cronologia? Tentativas para descobrir em antevisão a solução de problemas que não temos mas que seria bom que tivéssemos? Mesmo assim, não nos parece que seja fácil, em presença de um quadro ou de uma escultura nacionais, sustentar ou que é moderna porque namora platonicamente o ajustamento com um

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de certo modo, alheado das preocupações que os fizeram nascer, modificar, ultrapassar, corrigir? Então, artistas portugueses contemporâneos, esqueçam essas sortidas pela cronologia e deixem se ficar pelo naturalismo de oitocentos, façam retratos do Dr. X, trechos da Boca do Inferno, panoramas da Serra do Caldeirão, romarias em Carrazeda de Anciães, poentes sobre as Berlengas, auroras minhotas, meninas de serão tocando Chopin, e outras expressões igualmente fidedignas da vossa-da nossa modernidade. Mas serão assim, verdadeiramente, do «seu tempo»? Felizmente para eles e para nós que o problema tem outra forma de se equacionar. Soluções pictóricas individuais transcenderam já os seus próprios criadores, sobrelevaram os ambientes inspiradores, ergueram-se para além das musas, de forma a constituírem hoje como que um património comum das artes plásticas, uma aquisição do homem para a sua realização mais completa. O assunto a tratar, o tema da produção, a intenção do artista, sugerem a forma, a técnica, o material a utilizar. E se é certo que este último aspecto aproveita das lições do passado, das experiências anteriores, das tentativas elaboradas pacientemente nos ateliers de todos os «percursores», não é menos verdade que o assunto, a intenção pictórica, viu dentro de si a própria forma eleita a um lugar cimeiro e tida, ousadamente, como um elemento de superior e por vezes única importância. Trabalha-se com formas, com cores, com braços, com a resolução dos problemas inspirados no espaço da tela. Aí se procura um equilíbrio, uma harmonia, um ritmo, uma poesia, no pleno domínio do abstracto, sem que se tenha por intenção dar uma ideia do equilíbrio da balança, da harmonia do arco-íris, do ritmo do cavalo ou da poesia da flor. E as contribuições dos pesquisadores antigos são aproveitadas de pleno» com inteira legitimidade pelos artistas modernos, mesmo que estes tenham novamente uma intenção diversa do abstracto.

cubista, em seguimento dos estudos de Cézanne e Seurat; pelos Orfistas de Paris, Delaunay, Kupka e Picabia empenhados no aprofundamento da abstracção; pelo consequente sincromatismo do «Paris-América» com Mac Donald-Wright e Morgan Russell; pelo expressionismo alemão (Kandinsky)epelaabstracçãoorgânicadoGrupoBlue Rider; pelo suprematismo de Malevich; pela reacção contra a feição estática do cubismo, iniciada pelo Futurismo italiano com Boccioni, Carrá e Severini; pela evolução até à pintura metafísica de Giorgio de Chirico, o percursor da linguagem surrealista; pelas ulteriores experiências no caminho do abstracto tentadas na Rússia por Pevsner e Gabo, na Holanda pelo Grupo Stijl com Van Doesburg e o percursor Mondrian, na Alemanha pelo Banhaus do lado do expressionismo romântico-cubista de Feininger e do surrealismo geométrico de Klee, na França pelos «puristas» Le Corbusier e Ozenfant insurgidos contra o papel decorativo do cubismo post- -1914; passando por toda esta longa evolução até às manifestações mais recentes de Picasso, Moreni, Manessier, etc., quando a evolução do abstracto, dizia- mos, se processa deste modo, em Portugal, as coisas passam-se duma forma estranha. Afora uma exposição no Porto e outra em Lisboa, em 1916, de Amadeo de Sousa Cardoso, só por volta de 1945 se começou a ouvir falar de arte abstracta. Aparece neste ano um abstracto geométrico de Fernando Lenhas, e Cândido da Costa Pinto apresenta quadros «não figurativos». Em 1949, António Dacosta, Fernando de Azevedo e Moniz Pereira fazem não-figurativo na «Exposição Surrealista». Em 1952, Azevedo, Fernando Lemos e Vespeira insistem, desta vez, numa exposição com obras totalmente não-figurativas. Em 1954, a Galeria de Março apresenta o primeiro Salão de Arte Abstracta, e depois vieram em 1956 os «Artistas de Hoje», em 1957 a discutida mostra Gulbenkian, e em 1958 o referido «1. Salão de Arte Moderna». Que nos fica daqui? Evolução? Desde onde e até onde? Como evolução, se tudo nos aparece distanciado do tempo dos originais movimentos precursores e,

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Poderão afinal os artistas portugueses ser coerentes e ao mesmo tempo modernos? Quer-nos parecer que sim, que podem. E sê-lo-ão exactamente na medida em que não pretenderem ser coerentes com o «seu» tempo (vindo sempre e no fim a reflecti-lo...), na medida em que souberem eles próprios criar na abstracção de uma modernidade que cá não existe, construindo afinal a ponte de ligação com a cronologia, embora sujeitando-se a um cada vez maior hermetismo, a um cada vez mais difícil entendimento, ainda assim compreensível e explicável. O problema aparece transferido do acto poético da criação para o momento estético da percepção. O primeiro, livre, soberano, é da exclusiva responsabilidade do artista. Por ele se reflecte, afinal, a sociedade e o seu tempo, quer numa relação directa, de esforço de conjunto para a concordância, quer numa relação inversa, de crítica, de discordância, de irreverência, mesmo. E a irreverência é uma manifestação eloquente de coerência com o tempo. O se- gundo, o acto de percepção, o entendimento pelo público, a compreensão da obra de arte, está hoje dependente duma a-temporalidade, uma deslocação flutuante de valores e de prismas, um autêntico caso social a que não são estranhos os dolorosos problemas da mentalidade que um certo snobismo intelectual hoje traduz. Efectivamente, um desmedido gosto pelo modernismo, ou talvez só uma necessidade descontrolada, pode levar as pessoas a fardarem-se de casaca para assistirem às manifestações de arte moderna, mesmo que essa casaca se chame um «pullover» encarnado, uma camisa quadriculada ou um «esquimó» com travessas de madeira por botões. Reconheçamos que o problema da modernidade na nossa arte de hoje se acha um pouco por toda a parte, revestindo embora formas aparentemente distintas. No fundo, as angústias, proto-angústias e pseudo-angústias dos artistas, do público, de todos nós, só muito dificilmente deixam de ser ainda tristes manifestações da nossa mentalidade ainda não completamente pos-oitocentista.

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Spiderland , Slint (1991)

por Diogo Álvares Pereira

ao disco. As experiências com a dissonância, o afastamento da estrutura convencional da canção e a alternância de estilo de canto - entre o gemido exasperado e o spoken-word recôndito - foram reimaginados exaustivamente por grupos emo e pós-hardcore desde então, fascinados pela descoberta de uma zona de conforto na atmosfera hermética de Spiderland . Inevitavelmente, a narrativa claustrofóbica de “Don, Aman”, o build up pós-rock de “Washer” - irrompendo num solo de guitarra que parece libertar, de uma assentada, toda a tensão acumulada até aqui (imediatamente mergulhando de novo na paranóia persistente) -, ou, mais famigeradamente, o desfecho assombroso de “Good Morning, Captain”, converteram-se em propriedade pública para uma ínfima minoria. Talvez daí nasça a perplexidade colectiva: estranha se que música tão absorta no seu universo contenha em si, ainda assim, a habilidade de ressoar profundamente. De uma moradia suburbana em Louisville, Kentucky para o resto do mundo, peregrinando marginalmente à sociedade; porém, suficientemente achegado para vivenciar um rasgo e genuína conexão , deixando-o dispersar, por entre arpejos, batidas em assinaturas irregulares e palavras de solitude, no instante seguinte. Citando Steve Albini [Melody Maker , Março de 1991]: “Ten fucking stars”.

Em dado momento de Breadcrumb Trail (2014) – documentário de Lance Bangs sobre os Slint e o seu disco seminal, Spiderland (1991) – o baterista Britt Walford recorda os ensaios da banda na cave do vocalista Brian McMahan, o misto de saudosismo e perplexidade bem patentes na sua voz: “Limitava me a continuar durante horas e horas”. A confissão é ilustrada por um vídeo caseiro dos quatro jovens franzinos a praticarem uma versão embrionária daquela que viria a ser a derradeira faixa do seu chef d’oueuvre : “Good Morning, Captain”. Se a origem do saudosismo ainda é compreensível (afinal, mais de vinte anos haviam passado desde o lançamento de Spiderland), já a perplexidade apenas pode ser vagamente reconhecida; a sua génese demasiado entranhada na cultura idiossincrática e críptica do midwest norte-americano. O próprio Britt revela uma certa dificuldade em explicar a ânsia de ruptura com o tradicionalismo do rock, as dinâmicas entre membros e, acima de tudo, o sentimento de alienação social que paira sobre cada canto de Spiderland, restando ao ouvinte ficar preso na questão: como poderia um quarteto de adolescentes compor algo tão paradoxalmente gélido e ardente quanto esta obra-prima? De onde brotou toda esta bizarra, porém autêntica, percepção da vida? Spiderland é um autêntico fenómeno em plena era do grunge; quer se tivermos em consideração o quadro geral da indústria da música no início da década de noventa, quer se atentarmos no que é inerente

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João Francisco Correia

My line II, Vídeo HD, cor, som, 05'11'', Dimensões variáveis, 2022

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Entrevista ao Padre João Sarmento, SJ

por Salvador R Cavaco

O homem vive em relação. Há um carácter comunitário na vocação humana. A pessoa tem uma exigência da sua natureza: a necessidade de vida social, de contactar com o outro. Nessa relação, a pessoa responde à sua vocação. Dessa relação, forma-se uma expressão: a cultura. A Cultura é a expressão comunitária formada, cujo movimento é orgânico e encontra-se desenhado nos traços da história. Essa expressão marca com o seu cunho os conhecimentos e os valores da vida em comunidade. A estrutura social deveria servir a estrutura humana, e a Cultura deveria servir o homem; enquanto meio para que a pessoa se realize; enquanto meio para que o homem responda à sua vocação. A ausência de uma unidade comunitária é a ausência de uma unidade nas relações humanas, é a ausência de comunidade. O panorama cultural da nossa civilização no último meio século transformou-se bastante. Hipóteses desencontradas, trabalhos sem sentido e construções artificiais esvaziadas de qualquer essência. Se houve tempos que fora una, agora é dissoluta e repartida. Se a expressão comunitária formada, i.e. a cultura, é dissoluta, também a comunidade o é, e se a comunidade o é, também o homem o é. Vivemos tempos de confusão. Algures no verão do ano de 2022, dirigi-me a uma casa de Cultura, a Brotéria, na Rua de São Pedro de Alcântara. Sentei-me à mesa com o Padre João Sarmento, sacerdote jesuíta, escultor, e coordenador da Galeria da Brotéria. Esta é a transcrição de uma conversa acerca destas e outras cousas.

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Padre João Sarmento, SJ

Como tanta gente que nasceu no final dos anos 80, onde ainda estávamos longe de ter todos os modelos recreativos que existem hoje, nem sequer tínhamos televisão. Portanto, todas as narrativas eram coisas muito presentes, de grande alegria, de muita dança também. Mas não havia ninguém propriamente ligado às artes visuais. Mais tarde, talvez pela vicissitude de ser muito mau aluno, de não conseguir estudar, fui descobrindo algum talento através daquela que é a ferramenta elementar das artes visuais: o desenho. Através do desenho, por volta do quarto ano escolar, dá-se um momento específico. Falo da minha primeira experiência de desenho à vista, na qual resolvi desenhar um prédio que estava diante da minha escola. O resultado foi elogiado, e esse troféu conduziu me a não parar de desenhar compulsivamente, desde então.

O homem é sempre indissociável do seu percurso. Para o conhecer, é necessário conhecera sua origem. Pergunto-lhe, por essa razão, de onde vem o Padre João Sarmento? Venho de uma família bastante grande, em termos numéricos de gente, de irmãos, de primos. O contexto familiar não era ligado directamente às artes, mas ligado às ciências, em concreto à medicina. De repente, numa formação com imenso espírito de criatividade, mais da parte da minha Mãe, que tinha as provocações para aguçar o engenho e ter imensos modos de contornar os problemas através de soluções muito criativas e lúdicas, na qual o imaginário estava muito presente no nosso modo de nos relacionarmos e passar o tempo. Cresci num ambiente em que havia um incentivo à fantasia, estimulavam-nos a criar os nossos brinquedos, histórias e universos.

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Presumo, então, que tenha tido um percurso escolar, nomeadamente no ensino secundário, ligado às artes? Tive um percurso escolar muito atribulado. Fui expulso de pelo menos duas escolas, e, com treze anos, passei um ano sem estudar, a trabalhar; curiosamente, a montar uma bienal de arte, a pintar paredes, a aspirar os pavilhões. Depois, também estive ligado aos movimentos de grafiti e arte de rua. Sim, falamos do Porto nos anos 2000, não havia hipótese de comprar quase latas e nem se tinha acesso ao que se andava a fazer. Muitas vezes, deslocava-me a Lisboa para fotografar o que se fazia por cá. É nos seus 18 anos que se dá um período de conversão forte? É nessa idade que se dá um encontro místico, inesperado e fulminante. Esse encontro transforma o modo como me entendia a mim próprio e ao mundo. No entanto, não me fez afastar minimamente da Arte que seguia, que acompanhava e que tentava produzir. Nessa altura, depois de ter perdido alguns anos na escola, acabei por ir para uma escola secundária profissional. A Escola Artística Soares dos Reis, semelhante à António Arroio, que era totalmente vocacionada para o universo artístico, e isso salvou-me por completo. O sistema de ensino estava pensado para que o português, as ciências, essencialmente as disciplinas obrigatórias, fossem lecionadas através da lente da produção artística, e isso permitiu-me ter outra alegria. Na altura fiz cerâmica artística durante três anos, e depois saltei para as Belas Artes. No final do primeiro ano, em Belas Artes, decidi deixar as artes, a cidade, a família - deixar tudo para entrar neste percurso, praticamente infinito, de formação Que nesse período era tido como algo ‘underground’?

na Companhia de Jesus.

Mas, antes disso, o Padre João tropeça na Companhia, através da Associação Rabo de Peixe Sabe Sonhar, nos Açores. Exactamente, através de um trabalho em contacto com comunidades mais precárias e carenciadas. Esse é o primeiro momento em que me cruzo com um Padre que o seu trabalho, curiosamente, também se encontrava ligado às artes - um homem de uma enorme cultura, que falava muito de cinema, de fotografia e de pintura, e que, no fundo, era um Carismático com todas aquelas famílias, conseguia entrar nas casas nas quais mais ninguém entrava, e resolvia problemas que ninguém conseguia imaginar serem possíveis de resolver. E, de repente, diante do grupo com o qual durante onze anos me deslocava aos Açores, surge a oportunidade de fazer os Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Sendo que é nesses exercícios que é possível encontrar o ponto, uma Fé que provoca um encontro com a Natureza Humana. Há uma revelação de um Cristo, que é revelado através da Natureza Humana. Essencialmente é um manual de exercícios espirituais, que está escrito para ser feito durante um mês de silêncio. Os exercícios vão sendo orientados por um Jesuíta, ou por alguém com experiência. Prossegue através de vários momentos, e é um tipo de oração que exige muito recurso à imaginação - mais uma vez a fantasia, a imaginação, as relações entre o que vemos e o que sentimos, o que percepcionamos. E a fim de contextualizar: em que consistem esses Exercícios? Num retiro?

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Há uma expressão da espiritualidade Inaciana que é a indiferença. Que não se trata da indiferença de encolher os ombros perante as problemáticas próprias ou do mundo, visto que se trata de algo escrito no final da idade média, e as palavras têm outros significados. O significado da indiferença inaciana é: ter saúde ou doença, ter riqueza ou pobreza, fazer isto ou aquilo, é indiferente. É indiferente para aquele que sente a liberdade interior. Há uma libertação interior, a pessoa sente-se livre, profundamente livre. Livre para seguir um caminho ou para seguir outro; sente-se livre para tudo. Dentro das coisas muitíssimo boas que tem para escolher, escolhe aquela que lhe parece melhor. Há uma sensação grande de chegar ao cerne da liberdade interior, porque não é melhor ser padre do que ser casado, ser padre do que ser outra cousa melhor. Não és heróico, mais Santo, de maior proximidade, não é nada disso. Por isso mesmo é que é interessante chegar-se a um lugar… e com vinte anos sentimos sempre as coisas que podemos sentir em cada fase, tenho perfeita noção que haviam coisas à mistura que foram sendo purificadas, e que a decisão é tomada faseadamente, sendo que a decisão de seguir é do dia a dia. Seria absolutamente artificial dizer que havia uma decisão de uma vez para sempre. Existe um confirmar e reconfortar diário, e um reajuste gigante daquilo que é a ideia de vocação. E o que é a liberdade interior? Isto porque hoje parece existir uma confusão entre liberdade de voluntas, de vontade, de querer, e a liberdade de arbitrium, de arbitrar, de escolher. Chegar à liberdade interior não é chegar àquilo que nos apetece e àquilo que temos vontade de fazer, mas é antes chegar ao que temos verdadeiro desejo de fazer. Depois de retirados todos os obstáculos, todas as tralhas que nos

O que é que se manifesta no interior de um jovem de vinte que sente esse chamamento? Como é que discerne essa vocação? As relações familiares e de amizade transformam-se? A relação com as prospecções de vida também se alteram? É, sobretudo, um momento de afirmação, de autonomia. É uma decisão absolutamente pessoal, na qual não pode haver nenhum tipo de intromissão. Neste sentido, afecta todos os campos das relações. É, sobretudo, integral. Passa-se a viver em outro lugar, a habitar outras problemáticas. Percebes que estás num caminho de aventura, de odisseia com o próprio Deus. Em que não percebes nada do futuro. Há uma noção de baixar os braços, de te deixares levar na corrente, uma espécie de chamamento que pode parecer estranho, porque não se ouve uma voz exterior, mas uma voz interior que nos diz que é para ir por ali. Eu conheço os Jesuítas aos dezoito anos, já com uma conversão feita que não tem nada que ver com os Jesuítas. Eu tenho uma conversão em que sou apanhado pelo Espírito, que faz com que me passe a interessar, mais do que tudo, acerca disto. Essa experiência faz com que me comece a juntar a grupos, a participar em actividades, e que eventualmente faz-me encontrar esse grupo que ia a Rabo de Peixe. Só aos vinte, vinte e um anos é que decido ser Jesuíta. Não foram os Jesuítas, nem a Ordem que me levaram até Deus, foi… não foi ninguém, aconteceu. E nesses passos decide entrar na Companhia…

Foi Deus? - Foi Deus.

E ao tomar essa decisão, quais as primeiras Graças, as primeiras cousas boas que encontra? E quais as primeiras adversidades com que se depara?

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histórica para com a Companhia de Jesus? Não gosto de um discurso triunfalista e de esperar gratidão, aliás isso iria até contra os próprios propósitos. Acho que sermos expulsos por três vezes de um país, ficarmos sem nada, sem nenhum dos bens, e voltar por três vezes, e reorganizar a missão que é feita no campo do ensino, do acompanhamento dos universitários, conseguir ir ao encontro dos mais desfavorecidos em situações da exclusão, e no campo da cultura em concreto - que é aquilo nos ocupa nesta casa (Brotéria) - essas coisas manifestam o quão nos é caro o lugar da precariedade, parece-me que aguça o engenho… Quero eu dizer que a pobreza, o ficar sem coisas, o ser-se perseguido, o ser-se expulso, trouxe aos jesuítas, em Portugal, uma certa flexibilidade de os tornar historicamente mais peregrinos, e menos sediados nas coisas e nos grandes palácios. É muito bom podermos estar aqui na Brotéria, num espaço que nos é emprestado, por contrato pela Santa Casa, e celebrarmos a Missa numa Igreja, provavelmente das mais bonitas da cidade de Lisboa, que nos é igualmente emprestada - e na qual prestamos um serviço à cidade. É como entrar na casa de um avô, em que reconheces os retratos… Tudo o que encontramos na Igreja de São Roque é a história da nossa família, sentimos a devoção, o calor de dar continuidade àqueles que estão ali representados, isso tem muita força. Ao mesmo tempo, aquelas tábuas, aqueles panos, aquelas alfaias litúrgicas não nos pertencem, e estão muito bem guardadas e cuidadas por um museu, com o qual são gastos recursos e tempo. Agora, sim, por vezes há um desconhecimento. O Francisco Romeiras e o Henrique Leitão, juntamente com a Brotéria, têm empreendido um excelente trabalho no sentido de demonstrar que existiram vários jesuítas que deram um grande contributo para as Ciências, para a Cultura e para a Política, podemos falar no Padre Manuel Antunes, no Padre Luís Archer,

carregam, depois de deixarmos para trás as ideias de sucesso, de resultados, de realização pessoal, até a ideia da construção de uma própria imagem. São momentos muito especiais, momentos de muita Graça, sendo que são raros, sendo que só uma vez tive esse grande e enorme gozo de me sentir livre de escolher, de sentir uma libertação, um respiro novo, uma espécie fluxo de nova vida a correr. Parece um contra-senso sentir isto e entrar numa Ordem religiosa rígida. Mas, realmente, a pessoa é livre para se aprisionar, para se deixar levar, é livre por outros, e portanto é preciso ser-se muito livre para ser obediente. Nós fazemos votos de pobreza, castidade e obediência dois anos depois de entrarmos, mas estamos quase dois anos a pensar sobre eles, a colocá-los em prática, a ler sobre eles, a experimentá-los, a ter um mês de silêncio para reflectir. Entra-se voluntariamente num processo de autêntica confiança no outro, numa tradição em que te deixas levar por completo - desde da alimentação, ao descanso, ao lazer, aos projectos de vida, ao tempo que se fala com a família e amigos. No entanto, permanece uma enorme liberdade para, a qualquer momento, fazerem-se as malas e voltar para casa. Cerca de metade daqueles que entram no noviciado jesuíta, ao longo dos doze anos de formação, acabam por sair - o que não resulta em nenhum tipo de dificuldade ou constrangimento para a Companhia, isto porque se trata de um local de discernimento, descoberta e verdadeira liberdade. Em Portugal, o contributo e acção edificante que os Jesuítas tiveram no campo da educação são manifestos, no entanto, muitas vezes desatendidos ou desconhecidos. O Padre João acha que existe uma ingratidão E como agilizou e coordenou isso no decorrer de uma formação tão longa?

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Fará, este ano, cento e vinte anos de edição mensal ininterrupta, e isso é impressionante. Quando vem para esta casa aumenta a dimensão comunitária deste projecto editorial, projecto que continua com o mesmo foco. No entanto, o projecto Brotéria desdobra-se, e fica uma espécie de colosso. Acho que criámos um bocado um ‘monstro’, um género de Frankenstein, composto de várias partes. Uma parte de Artes Visuais; uma partes de Ciências, uma parte que reporta à História da Companhia de Jesus e outra à História em geral; uma parte que reporta à arquitectura e ao espaço religioso; e claro, a Teologia, a espiritualidade, a Filosofia, como artes principais do pensamento, a literatura… A Brotéria é agora um espaço e um monstro, porque é um bocado descontrolado aquilo que pode vir daqui. Não há uma identidade fixa e rígida, isto porque os seus actores podem-se alterar, os jesuítas têm mobilidade, e a qualquer momento virão para aqui outros que farão outra coisa, ou seja, acentuarão outras dimensões. Por exemplo, a dimensão do campo das artes contemporâneas enquanto pensamento tem sido forte, porque assim foi acontecendo - isto porque os que cá estão têm este. Hoje, qual poderá ser o papel da Igreja na Arte e, inversamente, da Arte na Igreja? Historicamente, o mecenato eclesiástico originou algumas das obras mais belas, existirá hoje uma crise desse mecenato? Podemos falar numa crise de arte sacra? Ou trata-se tão e somente de uma crise de Fé? Em primeiro lugar, há uma crise nos conceitos. E quando há uma crise nos conceitos, há uma enorme crise de identidades rápidas claras. Podemos dizer que face à questão de “o que é que é a Arte” encontramos uma enorme crise. No entanto, em relação à questão “o que é a Religião?”, o Catolicismo em concreto, não é uma crise, isto porque sabemos o que somos e aquilo em que cremos, não vejo que esteja em crise. Vejo que

ou até mais lá para trás! Pensemos no Padre Manuel da Nóbrega, no enorme colosso que é o Padre António Vieira. O que acontece é que por vezes essas figuras acabam por ser lidas com alguma superficialidade, com um enorme anacronismo - que tem sido um problema. Talvez essa ingratidão acabe por ser indício de que algo certo foi feito… Ser-nos-ia gratificante sermos expulsos mais uma vez, e, no fundo, no fundo, o trabalho secreto da Brotéria é a busca por uma nova expulsão… (Risos) Chegamos por isso à questão: o que é a Brotéria? Passou a ser uma revista de divulgação científica, depois uma revista de informação cultural, depois uma revista de genética - a Revista Portuguesa de Genética nasce da Brotéria com o Padre Luís Archer. Portanto, a Brotéria nunca foi apenas uma revista, foi durante muito tempo uma comunidade, foi sempre uma casa, um lugar, chamado casa de escritores, onde jesuítas de várias idades e de vários campos do saber se juntam para lerem e escreverem. Lerem o que está a ser produzido nas suas áreas, escreverem sobre isso e escreverem artigos que lhes interessem. Por norma, dão algumas aulas nesse sítio, nessa cidade em que está a sua casa, e a sua actividade pastoral é desenvolvida sobretudo aos fim de semanas. São sacerdotes que se dedicam em comunidade a construir um corpo de saber. A Brotéria nasce num contexto de Escola - no colégio de São Fiel, na Serra da Gardunha, surge como um apoio às aulas de ciências. Quando, em 1910, os Jesuítas são novamente expulsos, o Silva Tavares (fundador) vai para o exílio na Baía, e chega a escrever que não vai conseguir deixar a sua querida Brotéria, pois para ele era um modo de comunicar ciência a uma comunidade alargada, num tempo em que dificilmente isto acontecia.

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