Quadrante 14

Publicação animada

Índice

Editorial

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NUMPÁRA

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cotovia

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Requiem pelo tempo empedernido

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A importância da Independência em David Lynch

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Repensar a Universidade na crise das Humanidades

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Quando o leão ruge… o mundo escuta

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Leviathan: 370 anos depois

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Isto anda tudo ligado

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El-Rei Dom Duarte ou o Elogio da Puridade Tolerância: fundamento e limite da liberdade de expressão

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VERBO

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Emoções Morais e Confinamento em 2021: História de uma Agonia Antecipada A imprevisibilidade na condição humana Direito Penal em Minoriy Report (2002)

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A Voz da Testemunha

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desamor em dois atos

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Espaço publicitário

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O autor involuntário

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Entrevista a Romano Saraiva

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Ficha Técnica

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Editorial

O regresso da Quadran- te em 2020 espelhou, simulta- neamente, a ambiguidade dos tempos pandémicos e a von- tade de edificar um espaço de - dicado à reflexão e iluminação do humanismo presente no ambiente estudantil nacional. O compromisso em garantir a heterogeneidade temática e a multidisciplinaridade tradu- zida nas mais diversas áreas de origem dos artistas, estu- dantes, professores, inves- tigadores e profissionais que participaram foi devidamente cumprido. A rígida formalida- de académica e a divisão das humanidades foram dispen- sadas, pois o sopro criativo das primeiras edições da Quadran - te da década de sessenta criou a vontade de fundir a liberdade

cultural com o compromis- so contemplativo. Todos estes valores e vontades repetem-se e renovam-se neste novo nú- mero da Quadrante. AQuadrante, alémde ser um espaço reflexivo, também deseja ser um lugar expositivo que permite revelar novos ta - lentos das mais diversas áreas. É por esta razão, que a presen - te edição tem como primeiro e último artigo duas entrevistas de dois artistas plásticos emer- gentes, onde oferecemos ao leitor a oportunidade de con- templar as suas obras através de alguns dos seus trabalhos acompanhados por uma con- versa que explana o sentido e origem artística de Numpára (Ana Malta) e Romano Saraiva. A obra pode falar por si mesma,

mas as palavras dão-nos a co - nhecer um ângulo estético que nem sempre é visível no mun- do das artes plásticas. Todos os textos, foto - grafias e obras plásticas pre - sentes nesta edição represen - tam a vontade conjunta da Quadrante em apresentar a cultura enquanto aglomerado refractário que não necessita de imposição disciplinar ou divi - são temática. Mais uma vez, o objetivo desta equipa editorial é expor à comunidade que o in - divíduo, mesmo estudando ou trabalhando numa área mais ou menos técnica ou mais ou me- nos criativa, transporta sempre consigo uma vontade criadora, reflexiva e expositiva de simes - mo e do mundo que o rodeia. Direcção Editorial: Ana Mateus, Caio Escobar, João Mendes de Almeida, Rodrigo Cruz Silva, Salvador R. Cavaco

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NUMPÁRA

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NUMPÁRA é Ana Malta (1996, Lisboa), uma artista visual emergente. Em 2018 licenciou-se empintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e em 2020 concluiu ummestrado emGestão de Indústrias Criativas pela Univer - sidade Católica do Porto. Além das largas horas que passa no seu atelier, trabalha enquanto assistente de comunicação, produção e promoção nas Carpintarias de São Lázaro – Centro Cultural, na galeria Belo Galsterer e no Lisboa à Prova – Concurso Gastronómico.

Entrevista por Salvador R. Cavaco – Estudante de Direito (FDUL)

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Como começa o teu percurso artístico? Em que momento descobriste a tua vocação para a pintura? Tenho um interesse particular pelas fascinantes e numerosas expressões artísticas e, mais espe - cificamente, pela Pintura. É um interesse que me seduz. Enche-me de reflexões, de opiniões, de disputas e amores. Um talento que sempre me acompanhou e, por isso mesmo, quis ex - plorá-lo. Em Belas Artes é leccionado o prático e a sua razão. No mestrado, quis aprender como poderia aplicar os conhecimentos anterior- mente adquiridos à indústria; à área cultural; à minha vida profissional enquanto artista e, também, à minha vida pessoal. Assino NUMPÁRA desde o início do meu per- curso artístico. Um constante lembrete para me ajudar a não parar de criar. Um incentivo para continuar a tentar compreender e amadurecer este "talento" que me foi confiado. Apesar de já querer ter deixado o nome artístico, sempre me alegrou em escrevê-lo pois relembra-me das inocentes origens do meu trabalho e da evolu- ção que já teve. E quem é NUMPÁRA? Há dissociação entre NUMPÁRA e Ana Malta?

Constância A Cidade, (2020). Técnica mista sobre tela. Dimensões variáveis.

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De que maneira nasce a tua obra?

que contam histórias. A história da vida de cada pessoa. Cada um de nós é uma biografia andan - te. Aprendemos e crescemos assim. Somos seres racionais. Somos iluminados com consciência, moralidade, inteligência. Que bom que é assim! Inconscientemente criamos a nossa vida, mas limamos as arestas para não ser quadrada. E passa tão rápido - nem damos por isso! E como concilias essa ideia no teu trabalho? Na arte eu sinto uma enorme liberdade. Com - preendam a imensidão do espaço e ideias in - tangíveis ilimitadas que estão ao nosso dispor. Os artistas vivem de escolhas. Podes planear, pensar, reflectir; ou deixar a cabeça perceber o que chama ao "suporte". O quão luxuoso é não ter de pensar antes de agir? No meu caso a mi- nha obra nasce da minha tentativa de perceber/ compreender a minha maneira de criar. Cons - cientemente, eu pego nos materiais e uso-os. Por vezes, até com certas intenções. Mas, in - conscientemente, o cérebro trabalha de for- ma tão veloz que interpreta todos os estímulos diários vividos e transmite-me estes "dados vi- suais" que guiam o meu processo artístico.

A minha obra está em constante evolução, tal e qual como a da maior parte, se não de todos, dos artistas contemporâneos. [Omeu trabalho] Já se expressou em variados formatos, razões, cores e geometrias. No entanto, posso dizer que há sempre algo emcomum. O âmago daminha obra localiza-se na mais pura e desconhecida parte do ser humano - o inconsciente. O inconsciente, uma zona cega e confusa de perceber. Acho tão interessante tentar perceber o porquê de usar certas cores, o porquê de desenhar certas for - mas. De tal maneira que é complexo tentar pla - near uma obra. Pensar no que quero transmi - tir. O que quero exprimir! Mas parece haver um bloqueio quando penso e teorizo plasticamente umquadro. Fazemos isso a vida toda. Temos ca - lendários, lembretes, listas e sínteses de pensa- mento. "Pensa antes de falares"; "Pensa no que vais dizer"; "Não discutas de cabeça quente”.

Consideras importante a precedência do pen- samento?

Na nossa vida, é imperativo pensar antes de agir. Aprender as vogais, de seguida as consoantes. Construir palavras que passam a ser lidas em frases. Frases que são compostas em parágrafos

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Quero ver-te ao vivo, (2021). Acrílico, pastel de óleo, esmalte e spray sobre tela. 100 x 100 x 3cm

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Nonchalance, (2020). Técnica mista sobre tela. 220 x 160cm

Qual o teu objectivo enquanto criadora?

Uma pergunta difícil. É-me incerto. Eu sei o que gosto de fazer, o que me interessa. As minhas vontades e deveres. Sinto que me foi entregue a capacidade de criar e o objectivo é aproveitar a oportunidade e usá-la. Desde que continue feliz e, mais importante ainda, a divertir-me; sinto que há a possibilidade de fazer alguma diferen - ça na vossa vida [público].

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Expressão.

Onde encontro expressão? Através do corpo. O corpo fala. Acho interessante a forma como posso estilizá-lo; explorar os seus limites visuais e conceptuais. Corpo de quem? De onde? Quando, no tempo, o imprimi na minha memória? O corpo daqueles que amo.

Figuras, retratos, palavras, formas...pertencem ao suporte. Deixam-me por vocês. Trabalho com a contradição entre o conceito “não idealizado” e o facto da obra nunca ter sido externa à sua origem. É uma realidade confusa. Organizo-me por camadas; por estruturas. Uma inquietação que procura a estética. Uma busca constante de respostas que resultam em diferentes tipos de trabalhos, que, com sorte, me darão algum tipo de clareza e orientação. Todos eles expressam os longos pensamentos da minha consciência intemporal e como a minha mente - o inconsciente - lida com eles. Um diálogo puro. É orgânico. É técnico.

Uma presença. Um feitio.

Espaço. Onde encontro espaço? O que pode ser mais amplo e mais leve que uma reta? E que tal um quadrado? O equilíbrio. Quero contraste. Eu quero uma composição onde cada elemento é diferente e ilimitado como a sua plasticidade.

Erro como oportunidade. Erro como ferramenta.

Durante o processo criativo, todas as expressões tangíveis encontram-se e dinamizam-se de uma forma inconscientemente sólida. As cores são espalhadas pela base e, como na nos- sa natureza, parecem ter instintos, sentimentos... um conhecimento irracional sobre caminhos e harmonia.

Ana Malta, Fevereiro 2020

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cotovia

inspira... bom dia, cotovia! bom dia, meu senhor! expira... inspira… imagina-te numa praia o som das ondas a luz do sol sobre a face o cheiro a água salgada o beijo do mar aos teus pés expira… inspira… o som das máquinas que apitam incessantemente

que respiram por ti bombeiam oxigénio prendendo-te à vida expira…

inspira… as luzes fluorescents como que ao fundo de um túnel mas não podes ir não ainda expira… inspira… o cheiro a químicos enfermeiras que correm apressadas mais morfina só mais um pouco tentando manter-te aqui expira...

inspira… o beijo na tua face o último? na pele oleosa e amarelada

numa mão tão fria que já sabe a morte expira… inspira … adeus, cotovia que vontade de partir adeus, meu senhor pela última vez expira …

Rita Miranda – Estudante de Direito (FDUL)

Alícia Massoti – Estudante de Direito (FDUL)

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A DESCOBERTA

Urra! que me sei definir? Somos todos iguais! Queremos vaguear na vadiagem, Presos a esta existência que urge em se fazer dia, enquanto se é noite, feitos de estrelas, mortos à nascença, brilhantes na interjeição. Descosi-me mais um pouco. Levo-me à fábrica do amor, Mais um remendo se me espera. És tão linda! Sabes sempre o que me dar. És a beleza dos meus contos. Ouve-me e dá-me esse olhar terno, Sorriso pálido de quem luta sem guerras. Silêncio! Quero ouvir o mar que perdi Silêncio! quero cantar a melodia que me prende. Desalinhei-me e continuo no caminho Perdi-me e regresso sempre à tua luz! Guarda-me o lugar na mesa Deixa-me voar, segura na minha linha e voa através de mim, Tinhas tudo para seres livre!

Levantei-me para me sentar de novo. Repeti o processo tantas vezes que circulei pelo mesmo espaço até ver tudo panoramicamente Entrei. Saí. Entrei e saí A divisão incomodava-me, mas não me sabia caber em nenhuma. Estava inquieta, enquanto passiva e preguiçosa.

Abri a porta. Abri a janela.

Era falta de ar, era ânsia de luz.

Era o corpo a pedir repouso, com a cabeça a gritar ação. Era a náusea era a vertigem do stress. Era o choro da incerteza. Deitei-me no chão da varanda Olhei o céu Vi os pássaros ouvi o rio, Respirei. Era eu. SONS DEMIM

Autora dos dois poemas anteriores: Mariana Lopes - Jurista

Silêncio! que se vai ecoar no nada. Dantes é que era bom, E eu nem sei como era o dantes. Silêncio! que quero ouvir, Procuro a bainha que se desalinha de mim. Silêncio! que me entrego ao universo. Não encontro remédio para me acalentar, Sou um quente reptil que nos dementes se en - contra. Se o mundo pudesse apenas parar…. Entrar no vácuo do silencio, Deixar-se-me ir… Urra! que se faz tarde e vou a tempo,

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A importância da Independência em David Lynch

Quando se conjuga a palavra indepen- dência no campo da Cultura e das Artes tende - mos a construir um espaço dedicado à análise e crítica das circunstâncias financeiras do mundo da criatividade, onde se esboça uma guerrilha entre o Estado forreta ou as maléficas corpora - ções focadas no lucro e omundo “indie” que or - gulhosamente vocifera a sua independência de interesses económicos. Esta síntese generalista é o ponto de partida para se demonstrar que o apelo ou combate ao cifrão no mundo artístico é redutor de si mesmo, o exercício que sordida - mente associa a independência a esta discussão não se preocupa verdadeiramente com o estado da arte. O significado de liberdade ou indepen - dência sobe cordilheiras na contemporaneida- de quando se fala em David Lynch, pois é neste autor, (no sentido mais lato da palavra), que o conceito de independente alcança o seu senti - do mais interessante; em Lynch é ilógico asso - ciar o dinheiro à independência artística, pois o movimento definidor desta ideia é aquele que demonstra que ser independente é ambicionar o encontro da voz que define a autenticidade de cada um, no qual o factor económico não é, de todo, chamado para esta definição. O argu - mento e conclusão proeminente desta reflexão extrai-se do facto de que é a independência que concebe a substância criadora do indivíduo.

Muitos estudiosos e atentos analistas da comunidade cinéfila têm tentado entender e fazer compreender a imensidão que existe nas mais variadas obras de Lynch; os grandes cha - vões que têm vindo a associar-se a este realiza - dor passam pela relação complexa que o mun - do dos sonhos tem no universo lynchiano , pelo ressurgimento do surrealismo enquanto forma estética ou pelo enquadramento que os seus fil - mes têm no panorama sociopolítico e artísti- co pós-modernista. Não obstante o interesse e importância que estas temáticas têm para nos fazer compreender este autor, aquilo que mais se destaca na sua essência é a sua perseguição à liberdade total, ao desejo de se desprender de qualquer vínculo a influências exteriores de si mesmo. Quando se tenta desvendar a genealo- gia da filmografia de Lynch surge a tentativa de identificar as obras de Buñuel, Cocteau ou mes - mo de Keaton enquanto ascendentes diretos do surrealismo fílmico herdado por este reali- zador, porém, esta identificação comparatista é carente de razão, pois, a construção da obra lynchiana é isolada de referências e de trocadi- lhos estéticos, o próprio David conta-nos que, acima de tudo, se considera um pintor, que não é um cinéfilo e que desconhece as obras de mui - tos dos realizadores que lhe tentam colar aos seus trabalhos. Esta honestidade, que pode ser lida no livro biográfico e de memórias “Room to

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Dream”, não é uma forma presunçosa de se iso - lar dos “outros” ou de se assumir enquanto ser divino e especial que não necessita do mundo ao seu redor para poder criar, é sim, uma impor- tante lição para muitos artistas e analistas cul - turais – que o ponto de partida para a análise de um autor como David Lynch deve ser o próprio indivíduo e não o suposto sistema que o rodeia, se a análise partir do sistema e não do indivíduo não se conseguirá preservar a substância dis - tintiva do criador. O guru indiano e fundador da meditação transcendental Maharishi Mahesh Yogi aparen- ta ser a única referência que Lynch admite ter para o seu processo criativo, o encontro consigo mesmo e comas suas próprias ideias reflecte-se na independência da sua consciência inventiva construída a partir da meditação que o auxiliou a estar mais próximo de si mesmo. A construção genuína de mundos tão autênticos como os de Blue Velvet (1986) ou Twin Peaks (1990) apa- rentam ter a unicidade de uma mitologia que foi concebida sem pressupostos estéticos ou en- sinamentos formalistas, Jonathan Swift pode- ria piscar o olho à imaginação e adaptação que David Lynch nos traz na sopa de realidades que consegue confeccionar. Uma criança que des - cobriu, com felicidade, através das telas e pin- céis do pai de um amigo, que era possível viver enquanto pintor ou artista, e que ser pintor não era só ser o trabalhador que pinta as paredes das casas, trouxe ao jovem David a explosão de entrada para um mundo que ainda estava por construir; o seu mundo que contaria, simulta - neamente, coma briza optimista da sua infância e do nascimento do rock and roll da década de cinquenta embelezada com a liberdade e euforia aflitiva das décadas de setenta e oitenta. Através desta mescla de tentações e sonhos, Lynch criou mundos que não se conseguem identificar com uma realidade totalmente palpável mas que nos conseguem transportar para os sistemas oníri-

cos que percorrem as vielas dos jogos e baladas deste autor.

Após a visualização de um filme como Mulholland Drive (2001) ou Lost Highway (1997) é apelante aos espectadores, perante o frenesim visual e narrativo, formularem es- quemas lógicos para encontrarem um enredo ou uma mensagem definida pelo seu criador, algo que lhes assegure que existe uma conexão lógica entre tudo o que viram, como se David fosse um recorrente provocador que, por trás das cortinas, tenta esconder a todo o custo a verdade sobre as suas narrativas, quase como aquele malquerido Professor de matemática que oferece aos seus alunos um exercício irre - solvível. Porém, esta busca por uma função de comunicação na arte lynchiana é uma contradi- ção em si mesma, não existe qualquer propósito em definir uma mensagem verdadeira ou falsa através do trabalho deste realizador, pois estas obras são barradas a um significado específi - co, em vez disso, privilegiam-se a proliferação dos sentidos e a capacidade criativa do público. Pode-se dizer que a natureza artística de Lynch transfere-se integralmente para os objetos que consegue criar, pois as bizarras personagens, o constrangimento dos diálogos ou os cenários misturados em paletas e cronologias intempo- rais são alguns dos elementos espiralados que abrem brechas para que a independência do criador se desloque para o espectador, criando assim, um espectador-criador. O sentido in- dependente que faz Lynch acreditar e seguir as ideias da sua realidade torna-se um meio para que cada um de nós, no momento de absorção das suas obras, encontre a sua própria con - cepção do que está a ver, que se encontre com a sua linguagem individual e que não se sinta obrigado a seguir linearmente uma experiên - cia pré-fabricada que ambiciona atingir todos da mesma forma, afirma-nos que o público não pode ser visto como uma mera multidão pron -

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ta para consumir, pedagogicamente, a delinea- ção recta de uma mensagem. A única ambição que Lynch possui relativamente ao espectador é que lhe seja possível elevar-se de forma a criar a sua própria visão, para este realizador, a au - tenticidade individual de cada um deve ser pro- movida pelo artista. A elevação do espectador, enquanto indivíduo, surge através da possibi - lidade de cada um de nós poder criar e partici - par na essência do criador, de termos permissão para entrar nummundo autenticamente aberto, onde desfrutamos da independência de estímu- los que nos possibilitam interferir e apropriar - mo-nos desse mundo. Não há aqui espaço para discutir se o re - lativismo é absoluto ou perigoso, o apagamento das fronteiras racionais que definem a análise de um filme continua a ser um local onde Lynch não se insere, pois no fim, somos todo o Agente Cooper que busca por uma solução através dos seus sentidos, mas que entende humildemen - te quando algo é ou não é capaz de se adaptar a uma conclusão final. Um filme de David Lyn - ch oferece-nos a possibilidade de descobrir o sentido independente que preenche cada um de nós, promove a capacidade para que qualquer pessoa seja merecedora de absorver a realida- de e as obras artísticas através das suas pró - prias visões e representações. O encontro que o indivíduo tem com a sua própria linguagem e percepção pode fazer nascer um ceticismo rela - tivamente à própria comunicação que cada um pode ter com os outros e com o próprio filme, quase como se Lynch tivesse lido Wittgenstein, contudo, ao contrário do filósofo, para este ar - tista a desmultiplicação da individualidade con - segue comunicar com outros elementos para lá de si mesma, o encontro com o artista e com a sua obra pode fazer nascer redes comuns entre todos os que desejam entrar no mundo do Black e White Lodge, como nos mostram as comuni - dades e legiões de admiradores deste artista que

afincadamente preenchem teorias e debates na internet. Para existir uma intercomunicação não é necessária a generalização dos signos e senti - dos que se associam a estes mundos, é apenas fulcral mantermo-nos abertos sensivelmente ao que o artista tem para nos oferecer, expan - dindo e conectando a nossa própria linguagem ao objecto estético. A abertura dos enredos lynchianos coin- cide com a expansão e consolidação da nos - sa consciência perante a obra, quase como se houvesse uma harmonização simultânea entre a autodescoberta pessoal e a interpretação la - biríntica das muitas histórias que David nos oferece. Com o cinema de Lynch todos temos a oportunidade de relembrar a madalena de Proust enquanto memória que nasce do bolo e que é partilhada e relembrada distintamente por cada um. Este autor permanece enquanto polímata nas diversas artes que percorre; conti - nua, eremiticamente, a fechar-se no seu estúdio a pintar, a fabricar objetos, a manipular todo o tipo de sonoplastia, a compor novas músicas ou a conceber novas ideias para projectos minima- listas como as suas últimas curtas-metragens ou a fermentar o seu próximo grande empreen - dimento, como é o exemplo do regresso que nos trouxe a Twin Peaks em 2017. Enquanto tudo isto acontece, podemos continuar a usufruir da independência que nasce no artista mas que é transportada e partilhada para todos os que se sentem disponíveis. É um privilégio poder viver numa realidade onde continuamos a disfrutar do trabalho do mestre de uma das maiores re- voluções do mundo artístico, quer seja na com - plexidade global dos arquipélagos estéticos que criou, quer seja na simplicidade comezinha dos boletins meteorológicos que continua a parti - lhar diariamente.

Rodrigo Cruz Silva – Licenciado em Direito (FDUL), mestrando em Teoria da Literatura (FLUL)

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Quando o leão ruge… o mundo escuta*

* Slogan publicitário da sucursal da MGM em Lisboa, 1928

implica um diálogo com o outro e com a comu- nidade, sem a qual a arte não nasce. Cumpre - -nos, como sociedade democrática, alimentar este diálogo, reconhecendo à arte - assim como à filosofia e à ciência - a qualidade de serem dos poucos instrumentos que contribuem para a descodificação do futuro. Acreditando que o confinamento pontual que vivemos hoje alas - trará, caso nada façamos, a muitas outras esfe - ras da nossa vida de uma formamais duradoura, Manuel Melo – Mestrando em Desenvolvimento de Projeto Cinematográfico (ESTC) (autoria)

Da necessidade absoluta de nos fechar- mos e nos afastarmos uns dos outros nasce uma urgência ainda maior de nos aproximarmos e de agirmos. Como criadores, abraçamos a tarefa de pensarmos o nosso tempo, de olharmos para o futuro e o projetarmos, propondo valores, pen- sando problemas e mostrando formas de estar no mundo diferentes, que fogem àquelas que os nossos pais e a sociedade nos impuseram. Este é um trabalho necessariamente coletivo, que

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parece-nos ser esse diálogo que urge defender e reforçar, entre tantas outras áreas da cultu - ra que se vêem ameaçadas há décadas. Assim, ao nos concentrarmos no Cinema Português de hoje, abordamos o problema desta arte e da sua relação com os espectadores, fugindo à quere - la habitual entre um cinema dito de autor e um cinema supostamente comercial - distinção que não existe - e colocando no âmago desta proble - mática as questões da distribuição e do acesso. Fará sentido, primeiro, contextualizar sumariamente a realidade da produção, dis - tribuição e exibição de cinema em Portugal. 1. O financiamento público da produção de cine - ma em Portugal é feito através do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), cujo orçamento é proveniente das receitas geradas por taxas apli - cadas às subscrições dos serviços de televisão por cabo e à publicidade. O dinheiro que resulta destas taxas paga os custos de funcionamento do ICA, assim como os financiamentos que são atribuídos tanto ao cinema como ao audiovisual portugueses. Note-se que nenhuma parte des - te dinheiro investido provém do Orçamento de Estado. 2. Em 2019, registaram-se 185 recintos exibidores de cinema - nos quais se incluem associações/cineclubes, festivais, fundações, institutos de ensino, salas de municípios e os exibidores comerciais - e um pouco mais de 15 milhões e meio de espectadores. Destes recin - tos, as salas de exibição comercial contavam com 475 dos 583 ecrãs em Portugal. Deste nú - mero de espectadores, os distritos de Lisboa, Porto, Setúbal e Braga representam 73%. Na produção cinematográfica em Por - tugal, a curta-metragem é o formato predomi- nante. Visto outrora como um “cartão de en - trada” dos realizadores no cinema, assistimos há muito tempo a realizadores consagrados, como Miguel Gomes, Teresa Villaverde ou (an- tigamente) João César Monteiro, trabalharem

recorrentemente neste formato. Se isto se tor- nou uma marca identitária do nosso cinema, é importante contextualizar que tal se deve, em grande parte, a questões de financiamento. Em 2020, o ICA apoiou 4 longas-metragens de fic - ção e 6 documentais (esperam-se mais 5 no se - gundo concurso de documentários). O resto da produção de cinema emPortugal, que passa pelo ICAmas tambémpor concursos privados como o da Fundação GDA ou da Gulbenkian - que, tan - to percentualmente como em absoluto, apoiam anualmente mais projectos que o ICA, ainda que com montantes menores -, situa-se maiorita- riamente, se não integralmente, no território da curta-metragem. Atendendo à quantidade de curtas-metragens portuguesas distribuí- das comercialmente pelos cinemas entre 2015 e 2020 - quinze, entre as quais se contam sete agrupadas em duas sessões dedicadas ao for - mato em2020 -, questionamo-nos sobre de que forma as novas gerações serão capazes de criar uma relação com os espectadores se os seus fil - mes ficam circunscritos a sessões pontuais em festivais, ficando a maior parte desta produção inacessível ao grande público. Quantos de nós tiveram a oportunidade de ver a inebriante ode ao amor que é Amor, Avenidas Novas (2018), de Duarte Coimbra, ou esse encontro único entre a intimidade e o quotidiano ou entre o cinema e a vida, cujos contornos se esbatem, presente n’ A Casa e os Cães (2019), de Margarida Mene- ses e Madalena Fragoso? Ou os filmes de Jorge Jácome, Rúben Gonçalves ou Helena Estrela? A conclusão que retiramos é que as políticas pú - blicas para o cinema visam propositadamente a produção de filmes para não serem vistos. Se é um facto que raros são os sucessos de bilheteira de filmes portugueses equiparáveis ao das produções norte-americanas - em seis anos, seis filmes nacionais integraram o top dos quarenta filmes mais vistos em sala nos anos de estreia -, será talvez uma simplificação exage -

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rada dizer que tal acontece apenas porque não existe interesse dos espectadores em ver o que por cá se produz. Para isso, é necessário com- parar o número de semanas de exibição entre os vários filmes, o número de ecrãs em que pas - sam e a sua distribuição geográfica, o dinheiro a que têm acesso para a promoção que fazem dos mesmos e até os horários em que os vários filmes são programados. Em todas estas cate - gorias, perceberemos que a questão da viabili - dade económica destes filmes - que não deveria sequer ser um critério para implementar polí - ticas em defesa da exibição do Cinema Portu - guês - não pode sequer ser discutido enquanto as condições em que uns e outros são mostrados forem tão díspares. A única forma de corrigir esta situação é através de políticas que permitam uma pro - moção mais abrangente dos filmes e lhes dêem mais espaço nas salas, de forma a quebrar a si - tuação actual, com raízes antigas na dependên - cia dos distribuidores e exibidores portugueses do mercado norte-americano. Mas não basta. É necessário democratizar também o acesso ao cinema, estimular a abertura de cinemas no in- terior e reactivar os cinemas de bairro, fora dos centros comerciais, que hoje se contam pelos dedos de uma mão a nível nacional. Em 2012, o crítico de cinema Ricardo Vieira Lisboa lem- brava duas medidas implementadas na Argen- tina para proteger a distribuição e exibição do seu cinema: “uma taxa sobre o número de có - pias de filmes estrangeiros (quanto mais cópias tem um filme mais paga) e o apoio ao restau - ro e construção de cinemas de bairro”. A estas,

acrescentaríamos a proteção dos cinemas de bairro dos ataques do mercado imobiliário, im - pondo rendas controladas e impedindo que es - paços que albergam cinemas possam dar lugar a outros negócios - como foi o caso do Cinema Londres, entre tantos outros. A reaproximação do cinema das pessoas, reintroduzindo os cine- mas de bairro nas comunidades de forma a res- tituir o cinema como um espaço a que se vai a pé e onde se pode ir com mais frequência, sem que isso implique uma quebra na rotina muito maior do que a duração dos próprios filmes. A isto, e porque acreditamos que não cabe ao cinema e às artes a função educativa, é tam - bém essencial acrescentar o investimento na educação para as artes, quer através de projectos como o PlanoNacional de Cinema ou responsabi - lizando a RTP com o papel de formação de públi - cos que abandonou há décadas e que contribuiu para uma uniformização acrítica crescente do gosto. Está nas nossas mãos darmo-nos voz. Da liberdade de ser jovem emLisboa de Pedro Cabe - leira à densidade como que Pedro Costa retrata a vida de imigrantes cabo-verdianos numPortugal pós-colonialista, a diversidade doCinema Portu - guês espelha as diferentes origens e o confronto de ideias que nos une como povo. Democratizar o acesso à cultura emunir as novas gerações (e não só) de instrumentos para a descodificar e através dela se exprimirem- seja criticando ou pratican - do - permitirá cumprir o diálogo entre a vida das pessoas e a arte, fundamental à criação e à saúde de qualquer democracia. Março, 2021

Pedro Soares Teixeira - Montador de Cinema

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Manuel Melo – Mestrando em Desenvolvimento de Projeto Cinematográfico (ESTC) (autoria)

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VERBO

Para a Matilde, por me ter mostrado os limites da honestidade.

«Quero forçar todas as fechaduras. Afei - çoar as linguetas como uma criança molda plasticina. Decidir quanto espaço deixo para o olho espiar. Trocar todas as portas por cortinas que, como véus, casariam a publicidade da vida quotidiana com a condição do que é privado. De janelas abertas, deixar a natureza ajustar o ter - móstato da casa, com o quente sol a retocar o amarelo gasto da fachada do prédio e o denso frio as paredes de um vermelho opaco. Abriu a janela e, encostando-se à portada fechada, acendeu o cigarro. O dia acompanhava o automatismo desta sua ação: as nuvens mo - viam-se na mesma direção de ontem, os vizi - nhos repetiam os seus trajetos diários, pisando as mesmas pedras da calçada, e os decibéis da cidade criavam de novo uma cúpula asfixiante. Contudo, tudo isto era um momento de par - tilha, aquilo que cabe a cada um na divisão do seu próprio excesso. Preferia fumar um cigarro de enrolar em mortalha castanha pois durava mais que os industriais e, para além de confe - Só consigo ser honesto a partir de frag - mentos. Só sei fumar.»

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rir ao auto um cariz artesanal, dava-lhe tempo para conferir as personagens que compunham o seu teatro matinal: no prédio adjacente a Dona Deolinda e o controlo absurdo sobre a rua, dig- no de um romance de Orwell . Qualquer barulho era motivo suficiente para fugir à solidão de sua casa e abrir a janela em busca dos inconvenien- tes que o causaram. Mas haverá melhor vigilan - te? Por quem berrar em alturas de aflição? É um descanso saber que nem a pior das tempestades é capaz de fechar a janela da melhor sentinela. Os vizinhos e a história rezam que quando era jovem, inspirada pela icónica foto de Marina Ginestà no topo do Hotel Colón , começou a fre - quentar os comícios do partido comunista lide - rados por Cunhal, onde acabaria por conhecer o seu marido. Mais tarde, com a vitória de Soares, afastou-se do partido, mas nunca se demarcou dos seus ideais, tendo aberto um restaurante de nome Marina , onde os seus colegas militan- tes se reuniam em tertúlias sem fim. O peso da idade e a morte do marido fizeram-na vender o estabelecimento que, por coincidência, teria o mesmo fim que o Hotel Colón : a sua reposição pela construção de um banco. Desde então, tor - nou-se uma pessoa de desejos simples, que in - corria à vida dos outros para compor a sua. Paralelo ao apartamento de Dona Deo- linda está a loja de conveniência de Gurjit , um imigrante do Bangladesh que com as suas in - conveniências roça o assédio ou um cavalhei - rismo bacoco, deixando para trás um rasto de desconforto ou de curiosidade exótica nos ha - bitantes desta rua. Com poucos clientes, gasta os dias em pequenas distrações que o mantêm ocupado: como cuidar da aparência, ver vídeos de conterrâneos ou brincar com o cão do vizi - nho ao anoitecer a troco de uma cerveja. As ho- ras a fio que passa sozinho não lhe permitem ser indiferente com os clientes, porque a solidão exalta os seus sentidos de companhia. Ao con - trário de outros imigrantes, saiu do seu país em férias e estabeleceu-se por paixão e não obriga -

ção, contudo, a história perseguiu-o: todos os anos um grupo de empresários britânicos ten- ta comprar a sua loja e a subida das ofertas só é equiparada à força com que responde «Não!». E tudo isto era explicado pela singela satisfação que retirava da sua rotina diária, já que era ine - xistente qualquer margem de lucro. Por cima do apartamento de Dona Deo- linda vive uma família, ou duas, ou três; perde a conta aquele que tentar agregar esta enchen - te de pessoas numa família só. O apartamento só difere de uma pousada pela familiaridade das pessoas com o espaço: a intenção e vonta - de dos seus movimentos é controlada e tanto a paz como o caos é-lhes íntimo; ao contrário das pousadas, onde tal igual a fala na terceira pes- soa, há um distanciamento antes da nossa che- gada; o eu, o tu e o muro. Mas percebemos que dominar o espaço é insuficiente quando os flu - xos que o compõemnão se cruzam– ali, as pes - soas agem como se o mar nunca tocasse a areia, deixando a partilha do mundo ao acaso das pe - quenas indecisões, como decidir quem passa primeiro pela estreita porta da cozinha. Resol- vido o confronto, os circuitos restabelecem-se e a monotonia regressava vitoriosa. Tudo isto era suficiente para ele entender que o projetor ainda funcionava, que ainda co - bria a superfície da terra com as mesmas ima- gens passadas. Aguardava por umpercalço, algo que fizesse o rolo saltar uma pulsação, estando a sorte com os atentos que encontram estes in - tervalos hesitantes de realidade - os interstí- cios. Fechou a portada e viu-se só. Era o poder do silêncio na sua perfeita magnitude que, mo - nopolizando a sua casa, abria hostilidades se- melhantes ao sigilo monástico dos seus anos de catecismo. Aí, aprendera que a fé é crer no que vemos e no que não vemos, na razão e na es - perança. Achava razoável acreditar que o silên - cio era tanto omissão como barulho e a solidão tanto abandono como amparo, assim como era de esperar que tal agonia não fosse um dia um

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problema. Para ele, Cristo já tinha sido ultra - passado. Preferia cultivar a sua própria agonia a seguir o exemplo dos seus ancestrais espanhóis no culto de um Cristo agonizante. Guardava os anos de leituras da cartilha numa caixa fechada, com os respetivos batismo e crisma, com exce - ção das vezes em que se deparou com Cristo nos escritos, não o homem, mas a alma, e consigo guardava apenas essa possível prova da imorta- lidade do espírito. De momento, valia por si só o Verbo ser. Despiu o pijama e caminhou nu para a sala. Compactuava comBerger: estar descoberto é ser-se uno, por isso, no momento de escrever, expunha-se, acreditando ser a melhor forma de ser honesto. Este gesto quase supersticioso acompanhava as varizes de Victor Hugo , que es - crevia de pé apoiado numa mesa ou a literatura horizontal de Proust , que preferia redigir deita - do. A televisão estava ligada e as eleições ocupa - vam todo o mediatismo - os resultados seriam revelados essa noite. Via no processo eleitoral uma enorme simbologia. Para os gregos, o sím- bolo era um sinal de reconhecimento - um obje- to divido em duas partes, entregue a duas pes- soas que se tinham de separar e, desta forma, reconhecer-se-iam facilmente no futuro. Mas há um significado mais complexo na face míti - ca do símbolo, algo que aponta para além do seu significado imediato: uma ponte entre o incons - ciente coletivo o consciente individual, tal e qual as eleições, onde decidimos conscientes o nosso futuro com o resto de uma população que nos é anónima, inconsciente. Escreveu: «Todas as revoluções são coloridas, pro - duções sensitivas de uma só impressão. Falar da teoria das cores ou de política é igual - ambos são fenómenos fisiológicos, de caráter indivi - dual, que expandem para uma escala maior, um reconhecimento físico. Contudo, a cor supera a política devido à sua constância, umpadrão pro - tegido pelo sistema nervoso que é invariante às

diferentes formas de iluminação. E eu já perdi a conta das vezes que falharam os fusíveis dos cir - cuitos democráticos. Talvez a culpa seja da luz.». Desejava publicar uma obra em vida, mas nunca considerara fazer uma antologia dos seus fragmentos, impedido talvez pelos seus maiores inimigos: a originalidade, «dar mais do mesmo é retirar espaço ao novo», ou a verdade, «escrevo sobre o que não conheço». E tudo isto era uma luta justa e compreensível, uma procura pela uti- lidade da felicidade, já que não conseguia ima - ginar-se feliz sem o bom que é desejar; ou uma procura pela felicidade do útil, já que a sua felici - dade era a realização dos seus desejos. Vivia esta guerra intensamente desde que semudara para a cidade, ao contrário da sua antiga vida de campo, onde levara uma existência pacata e a natureza nunca o ocupara com estes problemas. Geria o lagar de azeite que herdara dos pais e, nos tem - pos livres, escrevia no interior deste espaço ar - caico, mal iluminado pelas bruxuleantes chamas das candeias de azeite, obrigando-o a permane- cer imóvel e ajustando o olhar à densa penumbra que nele pairava. Neste local não escrevia nu por questões de higiene, contudo, o decoro da natu - reza e o seu sentido de harmonia, permitiam-lhe por si só ser pragmático e inventivo. Dificilmente abalavama sua paz, graças à proteção dos exten - sos olivais que o rodeavam. E ele sabia que não tinha sido o primeiro a usufruir desta magia: os gregos já tinham consagrado a oliveira a Atena e os romanos a Júpiter e Minerva ; a Cristandade como santo óleo na lâmpada do Altíssimo; assim como os seguidores do Alcorão, que ajustaram o eixo do mundo a esta árvore. Esta fórmula enig - mática cultivava tanto a terra como a si mesmo e a sua vida brotava assim: pacata e serena. A inspiração consumia-o porque o cam - po possuía uma panóplia imensa de contos, di - ficultando, às vezes, o seu discernimento pelo que era real ou imaginado. Recordava em par - ticular a história de uma rapariga que, por ser

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a mais bonita de todas, estava encarregue de transportar a bandeira de tecido, ornada com objetos de ouro e prata, que anunciava o final da apanha da azeitona. Endividado, o seu pai en- tregou-a como bem de penhora e Eva teve de limpar as botas do patrão todos os dias, ajoe - lhada no chão e usando apenas um lenço, mas, humilhada, decidiu ripostar. Esperou pelo cair da noite e dirigiu-se ao barracão do proprietá - rio onde estava armazenada toda a azeitona de colheitas passadas e, com a ajuda de um trator, colocou todas as vasilhas dentro do atrelado. Resguardada pelo silêncio das estrelas, desapa- receu estrada fora cantarolando: Ao amanhecer, o céu cobriu-se de nu- vens e os estampidos dos trovões aproxima - ram-se da aldeia que entrou em alvoroço, não de susto, mas de cobiça. «Deus está pelos po - bres!» gritavam eles com cestos e sacos. Atola - dos pela lama, corriam pelo campo através de veredas e atalhos para apanhar a azeitona que caíra. Não havia barreiras e no meio do sussur - ro da tempestade ouviam-se pragas e ameaças entre os proprietários e os aldeões. «A azeitona que cai antes dos Santos é de quem a apanha!» berrava um deles. Deus também estava do lado de Eva que, com tal distração divina, conseguiu fugir antes que algo pudesse ser remediado. As más línguas contam que fez uma fortuna e foi viver para a cidade. Esta história era um de muitos exemplos de algo que não conseguia distinguir entre real ou imaginado e essa era a beleza do mito, que, respeitando uma espécie de princípio de con- servação, fazia surgir dentro de si mesmo ou - tras narrativas, com fórmulas que se adaptam a nós – ouvintes e contadores. Esta história era Tome lá esta penhora Criada em noite bela Fica o senhor penhorado Pela mão de uma donzela

especial porque na sua infância Eva transfor - mara-se em matéria viva, andante. Ao passear pelas ruas da sua aldeia tinha breves encontros com ela, onde estendia a mão tentando tocar - -lhe e Eva, fugidia, afastava-se com um sorriso. E isto nunca colocou em causa a sua sanidade – era uma criança e por isso a realidade não o podia censurar. Inocente, fugia do mundo, mas o imaginário, como nos conta a matemática, é um número complexo que tem parte real igual a zero. O tempo passou e Eva não conseguiu fugir mais à história Sentado nu na sala, apercebeu-se que as interações da vida quotidiana implicam gestos específicos; não se desenrolam com esponta - neidade e participam numa ordem ritual que todos esperam ver respeitada, mas, apesar de fruto da sua imaginação, arrepende-se de não ter agarrado subitamente a mão de Eva, de ter traduzido com o seu corpo a vontade de ir mais além, de reclamar um afeto que abrisse os invó - lucros mais íntimos dos dois. Comamaioridade, percebeu que há um limite nas orações escon - juratórias desta árvore mágica que é a oliveira – contra trovoadas ou exorcismos, benzeduras ou sortes divinas, mas o que não pode ser visto permanece invisível. Sentiu com os seus pés o frio incómodo dos azulejos que, num padrão fosco de azul e branco, cobriam a superfície da sala, estenden- do-se até às bibliotecas, que não eram mais do que quartos com estantes preenchidas por li - vros. No fundo, realizara, como tantos outros, um dos sonhos de Borges . Esta curiosidade in- telectual movia-o de tal forma que, em certos momentos de imersão mais profunda, encon - trava-se totalmente alienado do resto da vida, como Peter Kien sem Therese . De tempos em tempos, precisava de moderar estas visitas ao seu mundo interior, porque distante das preo - cupações quotidianas, sufocava quando con - frontado de novo com a realidade.

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«O chão é a verdadeira narrativa de uma casa, um areal acarinhado pelo mar dos nossos movimentos. Se a história surgiu após o apare - cimento da escrita, o chão chegou primeiro para contar as nossas viagens. A graça da sua quietu - de torna-o o melhor ouvinte possível, mas tam- bém o melhor contador – os posteriores ouvem o silêncio das fábulas imortalizadas por uma mancha de tinta, uma assoalhada quebrada ou a guarnição de uma porta carcomida pela humi - dade. Tudo isso é o reflexo de uma contínua pas - sagem de testemunho. Só depois me interessa o suster do alicerce ou a proteção do telhado.». A sua realidade era semelhante à narra- tiva do chão; os livros andavam por ele, abrindo sulcos às longas horas de conversas com as rea- lidades escritas por outros. Os autores que lia e a vida das suas personagens tomavam a forma de água e ocupavam os vazios da sua própria história. Ao contrário de Dona Deolinda, que adornava a sua vida com realidades próximas, ele via-se perdido nos mundos imaginados por outros. Podia acordar e beber cinquenta xícaras de café como Balzac , certo dia apaixonar-se por chocolate como Joyce ou só conseguir escrever a fumar um charuto como Mark Twain ; peque - nos gestos que faziam da sua biografia um re - sumo de outras vidas alheias. Quando se sentia incompleto, procurava esta beleza que, achava ele, completava a existência das pessoas que admirava. Desta forma, talvez também ele pu- desse ser admirado por Negreiros , porque não existiam em si limites na quantidade de mun - dos que nele podiam habitar. E isso incluía o bom e o mau que o universo nos oferece. Saía de casa nos dias em que o sentimento ultrapassava a palavra e procurava algum conforto juntando os fragmentos recortados das paisagens da ci- dade que, como um puzzle , ocupavam a sua pa- ciência e estimulavam os seus sentidos. Quando o inverso se proporcionava e as palavras pro- curavam retratar estas emoções, regressava ao

conforto de sua casa, protegido de novo pelos livros. E este estranho equilíbrio manteve o seu barco à superfície de sentimentos indesejados, durante tempo suficiente para o fazer acreditar que seria sempre assim. Contudo, nas últimas semanas começara a sentir o casco quebradiço e, nos momentos de maior aflição, remendava a quilha da sua embarcação a qualquer custo. Como Job , sofria com a sua própria paciência, mas mantinha-se fiel aos seus remendos. A hora de almoço aproximava-se; passou pelo quarto para vestir um roupão e dirigiu-se à cozinha para preparar o estufado de favas com entrecosto, uma receita ensinada e apurada pela sua avó. Lembrou-se de alguns dos preceitos da ordem pitagórica e percebeu, para infelicida - de sua, que Pitágoras não o podia acompanhar nesta refeição: «Não posso comer favas ou to - car num galo branco. Não posso partir pão, nem posso comer um pão inteiro. Não posso apanhar o que caiu ou passear em estradas. Diógenes Laércio conta que Pitágoras morreu ao deparar- -se comum campo de favas, pouco depois de ter fugido de ataque inimigo. Fiel aos seus ensina - mentos, recusou-se a percorrê-lo e foi morto. Como os princípios tornam as pessoas peculia - res!». Colocou a comida a cozer em lume-bran - do e foi tomar banho. O ato de banhar constituía uma das so- luções viáveis que conhecia na arte de escapar aos problemas. O humano é, por origem, um fu- gitivo, mas o problema da sua fuga está em sa- ber para onde fugir. E existe um leque vasto de opções: a fuga através da religião, do trabalho ou do vinho, por exemplo. A religião não o satis - fazia porque ela própria era uma fuga ao sórdi - da da vida, e o refúgio da alma não assegurava, de momento, o paraíso do corpo. Pelo trabalho fugia à pobreza e não ao espírito, apesar de en - contrar algum consolo na sua arte, os seus ren- dimentos vinham de propriedades herdadas, tornando esta opção inviável. E o vinho vêm sempre de mãos dadas com a ressaca. Por ou -

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tro lado, no banho importa a limpeza e a aten- ção para com o corpo, tornando os problemas da alma secundários. O automatismo dos braços que escovam os despojos do dia, ao lado de uma mente ocupada em manter este mecanismo a funcionar, criavam um momento de transcen- dência incompleto, entre o físico e o espírito. Nesse espaço de tempo abstinha-se também de pensar na simbologia da água, para apenas usu- fruir desta evasão que era só dele. Terminado, vestiu-se e retirou a comida do lume. Como costume, empratou num serviço de fina porcelana, debruado a ouro e pintado à mão num padrão de azul e branco. Não era o seu único conjunto de loiça,mas concedia à refeição o requinte que o paladar precisava. Tinha-lhe sido oferecido pelo seu amigo Júlio que, anos antes, o trocara por uma pintura. Conhecera Júlio numa exposição de umartista cujo nome não conseguia recordar. Era uma pessoa ambiciosa e por isso in- satisfeita, mas não fora educada assim. O seu pai, um vidreiro, realizou as suas ambições limitan - do-se a sobreviver e nunca teve possibilidade de lhe pagar uma educação universitária. Mas, de - cidido a graduar-se, escolheu o ramo da pintu- ra, onde, por falta de alunos, ofereciam bolsas de estudo. Ser atraído, contra vontade, para o mun- do das artes foi inicialmente um processo com- plicado, mas conquistou-o rapidamente – «é uma profissão onde a beleza não se cansa.», di - zia. Esta independência concedera-lhe o direito à solidão, por ser uma exceção ao comum, liberta - ra-se do pressuposto que os humanos estão con - denados a sofrer deste problema. E este era um dos muitos motivos porque apreciava estar com Júlio, sentia que tinha muito a aprender. «Não há métodos para impedir a solidão», explicava, «só há formas de diminuir omedo de estar sozinho», e concluía: «Tens de ganhar o direito a estar só e perceber os deveres que a tua solitude acarreta.». Há hora da refeição era inevitável es - preitar a vida da mulher do apartamento adja- cente, já que a mesa da cozinha estava coloca -

da de frente para a janela; todavia, como num programa de televisão, tentava gerir o conteúdo que lhe era oferecido - se as cortinas estivessem abertas e ela se despisse, continuava a sua refei- ção na sala. Próximo de terminar o seu prato de favas, a mulher saiu da casa-de-banho, enrola- da numa toalha que lhe cobria pouco mais que o tronco, deixando à vista a pele morena que, só ao olhar, já parecia suave. Seguindo o seu prin- cípio, apressou-se a comer e colocou o prato na pia, mas antes de sair da cozinha, ao despe- dir-se com um piscar de olhos, reparou que a mulher o olhava fixamente, nua. Os seus seios empertigados apontavamna sua direção, emol - durando a tranquilidade que o resto do corpo transparecia - era um ato pensado, ela queria ser admirada e causar admiração. Não se trata - va de um acenar narcisista, mas de uma simples contemplação mútua. Permanecia quieta, com os braços estendidos ao longo do perfeito corpo e, em gesto de convite, desdobrou lentamente um sorriso de pérolas brancas – o constrangi - mento estava quebrado. Ele aproximou-se da janela e, enquanto tremia de espasmo, come - çou a despir-se. Não sabia o porquê, mas pa - recera-lhe o mais correto a fazer, um ajusto no equilíbrio da contemplação. Em pé ou corpo de igualdade, imitou a mesma posição da mulher, estendendo os braços e abrindo um sorriso que, pelo tabaco, não era tão luzidio. Permaneceram assimdurante alguns minutos, a decorar as for- mas, os pequenos movimentos e o efeito da sua repetição. Sentiam que tinham perdido toda a sua individualidade no corpo do outro, porque eram tanto espelho como quadro. Fechou os olhos e pensou: «Se contasse, ninguém acredi- taria. E que bom que isso é. Uma boa vida é uma possível mentira. Engano a ilusão com histórias honestas e vivo as fantasias que outros só ima - ginam.». Quando abriu os olhos a mulher já es - tava vestida e tratava das lides domésticas como se nada tivesse acontecido. Tal foi a despedida abrupta que, por momentos, sentiu-se usado,

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