Quadrante 15

pública? Que há constrangimentos se se pensa de outro modo?

do próprio? Porque é que a opinião comum determina a realidade? O conto não parece dar resposta a estas questões, mas é evidente que as provoca. A história termina com o episódio absurdo da saída de um imperador totalmente despido à rua: há uma provocação. A pergunta que resulta é: “porquê”? O mais alarmante, se formos ver, é que a provocação mantém-se válida fora do contexto que a desencadeia. É possível estabelecer uma ligação entre as personagens e o leitor, entre os habitantes daquela cidade e a humanidade, e é isso que desperta o interesse. Com efeito, não pode cada um perguntar-se – “Será que dou crédito ao que vejo? O que é que eu vejo: o que realmente vejo ou o que os outros determinam que eu veja?”. E, para o caso, não é relevante se vejo o que está efetivamente sob o meu olhar, se capto isso a que chamaríamos “as coisas”. O aspeto central da interpretação que tem vindo a ser feita não se prende com a circunstância de o fato ser fictício, mas com a extraordinária influência que a atitude e a palavra dos outros tem sobre a do próprio na determinação da realidade. O problema, portanto, parece residir na cedência a reações do tipo – “ninguém pensa assim”, “já ninguém pensa assim”, “só tu vês isso”, “estás sozinho nisso”. Do ponto v ista lógico, elas mostram-se absolutamente insuficientes. No entanto, a sua expressão no dia a dia é frequente e goza de uma enorme autori dade. “Ninguém pensa assim” pode colocar um ponto de final a uma discussão; ou, inversamente, “toda a gente pensa como estou a dizer” pode fazer toda a diferença num jogo persuasivo. São alvo de troça por parte do conto aqueles que aderem cegamente a uma tese; aqueles que, num pequeno grupo, concordam sem deliberação com a maioria, e que, numa sociedade, assentem exclusivamente movidos pela opinião pública. E não é verdade que há em cada época qualquer coisa como uma opinião

No fundo, As roupas novas do Imperador constitui uma provocação àquela experiência de cultura que se toma a si mesma como absoluta: uma vez que a cada cultura está associada uma opinião pública, uma cultura que se tome a si mesma como absoluta decidirá a realidade segundo o ponto de vista dominante; nesse caso, tudo o que escapa a esse ponto de vista é mal visto pelo simples facto de lhe escapar, e é essa insuficiência lógica que é realçada e ridicularizada pelo conto. Tudo isto fica ainda mais evidente quando se atenta sobre o facto da criança ser a única a revelar o que verdadeiramente vê. A criança, símbolo da inocência e da pré corrupção pela sociedade, é a eleita. O que é que realmente vê a gente amadurecida?

No final de contas, resta saber se desfilamos todos nus.

Quadrante, 2023

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