Quadrante 15
em que a criança revela o que vê, sucumbe a tão firme convicção de que o imperador estaria a desfilar com umas roupas magníficas e abre-se lentamente a possibilidade de a visão de cada um fazer jus à realidade. Importa ainda destacar um fator que, sem dúvida, tem influência no rumo da história e que pode condicionar a legitimidade das perguntas. Logo no início da narração, quando se conta que dois vigaristas, fazendo-se passar por extraordinários tecelões, chegam à cidade, é referido que as suas roupas teriam a qualidade particular de serem invisíveis a qualquer um que fosse impróprio para o seu cargo ou irremediavelmente parvo. Ora, este ponto é fundamental, pois constitui a antecipação de uma possibilidade, a saber – a possibilidade de alguém não ver as roupas quando estas lhe fossem apresentadas. É visivelmente diferente mostrar determinado objeto com este adiantamento e sem ele. Se ignorassem as implicações da incapacidade de admirar o suposto fato, talvez as personagens admitissem que não o viam. E isto, não necessariamente pelo jogo com a sua reputação, mas porque a incapacidade de ver poria em causa a existência do fato, uma vez que ela não cobriria a hipótese de ele – ainda que presente – poder não ser visto. De qualquer das formas, mantidas as atitudes dos tecelões, não é possível dizer com certeza que as personagens negariam a existência das roupas. E, se os restantes presentes mentissem de novo, provavelmente as dúvidas manter-se-iam – “Serei estúpido? Serei impróprio para o meu cargo?”. Assim sendo, fica evidente que, qualquer que seja o caso, a atitude e a palavra dos outros não é indiferente para a determinação da realidade. De novo, surgem as perguntas – “Porque é que ninguém acredita verdadeiramente no que vê? Porque é que ninguém põe em causa a existência do suposto fato? Porque é que a palavra dos outros tem mais peso do que a palavra
contemplar aquilo que teria sido feito para ele, exclama para consigo – “O quê! Não consigo ver nada! Porquê, que desastre! Serei estúpido? Serei inadequado para este cargo?”. No fundo, é tão certa para cada uma das personagens a impossibilidade de ver alguma coisa como a ideia de que há algo para ser visto. Há uma convicção absoluta de que qualquer problema verificado só pode residir no sujeito e não fora dele. Por isso, parece legítimo afirmar que ninguém acredita no que vê, no sentido em que ninguém considera verdadeiro – real – aquilo que está a ver. A circunstância de não ver não é suficientemente forte para pôr em causa a existência do objeto que deve ser visto. Legítima parece ser também a tese de que a lavra dos outros tem mais peso do que a do próprio, ou de que a opinião comum determina a realidade. Com efeito, se há a certeza de que existe um fato para ser admirado, em que se baseia ela? O que fundamenta essa convicção, que até se impõe sobre a evidência dos sentidos? Para retomar os exemplos fornecidos, seria de apontar a atitude dos outros que estavam presentes na sala como fundamento dessa convicção. O mesmo é dizer que, o facto de os vigaristas atuarem como se houvesse fato, e – para o caso do imperador – o facto de os restantes presentes se dirigirem a ele como se houvesse fato, constitui a validação da sua existência. Este aspeto torna-se ainda mais claro, aquando do desfile do imperador pela cidade. De entre a multidão, há uma criança que grita “Mas ele não tem nada posto!”, e o mais interessante é o que acontece a seguir: gradualmente, as pessoas vão repetindo o que a criança dissera, até fazerem desse comentário um comentário seu, sem receio de serem mal vistas. Daqui se segue que, para uma impressão ser credível, ela deve ser validada por outro; mais: este outro não tem de ser uma multidão em peso – basta uma única pessoa (uma criança até) para que a impressão seja validada. A partir do momento
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Quadrante, 2023
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