Quadrante 15

tem mais peso do que a palavra do próprio? Porque é que a opinião comum determina a realidade?”. Para dar seguimento a esta problematização, é necessário, primeiro, fundamentar a legitimidade das perguntas. Será, de facto, verdade que nenhuma personagem acredita verdadeiramente no que vê, que ninguém, no seu íntimo, põe em causa a existência do suposto fato, que a palavra dos outros goza de uma autoridade superior, que a opinião comum determina a realidade? Poder-se-ia argumentar que nenhuma das personagens acredita na existência das roupas, apesar dos elogios tecidos; ou que, pelo menos, vacila quanto à sua presença. No entanto, e se assim fosse, que problema haveria em desmascarar a realidade? Que constrangimento haveria na confissão de que nada era visível? A absoluta certeza de que ninguém veria nada, porque não haveria nada para ser visto, não alteraria o rumo da história? Além disso, a narrativa é feita de forma a que o leitor possa aceder aos pensamentos das personagens, e esse não é um aspeto menor, pois o pensamento revela-nos aquilo que está oculto, aquilo que é anterior a qualquer adornamento - a consciência em bruto. Tomemos o exemplo do primeiro-ministro: mal se apercebe de que não é capaz de ver nada, no seu íntimo, é assaltado pela dúvida – “Serei burro?” – e, quase imediatamente, irrompe outra vacilação – “Talvez não tenha sido feito para o meu cargo.”. Ora, o que importa retirar do seu pequeno monólogo interior é a circunstância de ele não levantar nem por um instante a hipótese de não haver algo para ser visto; parece lhe inquestionável que haja um fato à espera da sua aprovação. O mesmo sucede com o conselheiro do imperador: uma vez que não vê nada, pensa “Eu não sou estúpido. Não devo ser adequado para o meu cargo.”. O próprio imperador, quando se dá conta de que não pode

crianças que pretendo resgatar para uma leitura mais profunda do conto a que se faz referência. É necessário um olhar amadurecido para que o leitor se reveja na história – para que faça da história uma história que podia ser sua – mas esse amadurecimento não diz tanto respeito a um abandono da crença nos designados “contos de fada”, mas a uma tomada de consciência sobre a caricatura da nossa vida. Um outro obstáculo à leitura pode ser o riso: um tipo particular de riso; trata-se de um riso igualmente distante, um riso que surge de uma demarcação. O leitor que ri deste modo classifica a história como absurda, não é capaz de ir além da própria história. Parece-lhe ridículo que um rei possa alguma vez ter saído à rua em tais circunstâncias ou que isso pudesse alguma vez suceder connosco; parece-lhe um extremo que, de tão extremo, encarna o absurdo (não se coaduna com a realidade), de tal modo que essa absurdidade chega a ser cómica. No fundo, tanto uma disposição como a outra impedem o leitor de reconhecer no conto uma metáfora da sua vida; ambas as situações se mostram hostis à receção de qualquer sentido figurado. É necessário, portanto, quebrar essa armadura para um verdadeiro confronto com o texto. Uma vez quebrada, o leitor encontra-se perante um extraordinário tratado filosófico, como procurarei fazer ver. A identificação entre personagens e leitor que o presente artigo pretende pôr em evidência não é da ordem da ética e da moral. O mesmo é dizer que as considerações que irão ser tecidas não se prendem com o facto de o imperador e as demais personagens mentirem sobre o que veem ou estarem absolutamente preocupadas com a sua reputação. O paralelismo que aqui opera é mais profundo, e a respeito dele levantam-se as seguintes questões: “Porque é que ninguém acredita verdadeiramente no que vê? Porque é que ninguém põe em causa a existência do suposto fato? Porque é que a palavra dos outros

Quadrante, 2023

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