Quadrante 14

ta para consumir, pedagogicamente, a delinea- ção recta de uma mensagem. A única ambição que Lynch possui relativamente ao espectador é que lhe seja possível elevar-se de forma a criar a sua própria visão, para este realizador, a au - tenticidade individual de cada um deve ser pro- movida pelo artista. A elevação do espectador, enquanto indivíduo, surge através da possibi - lidade de cada um de nós poder criar e partici - par na essência do criador, de termos permissão para entrar nummundo autenticamente aberto, onde desfrutamos da independência de estímu- los que nos possibilitam interferir e apropriar - mo-nos desse mundo. Não há aqui espaço para discutir se o re - lativismo é absoluto ou perigoso, o apagamento das fronteiras racionais que definem a análise de um filme continua a ser um local onde Lynch não se insere, pois no fim, somos todo o Agente Cooper que busca por uma solução através dos seus sentidos, mas que entende humildemen - te quando algo é ou não é capaz de se adaptar a uma conclusão final. Um filme de David Lyn - ch oferece-nos a possibilidade de descobrir o sentido independente que preenche cada um de nós, promove a capacidade para que qualquer pessoa seja merecedora de absorver a realida- de e as obras artísticas através das suas pró - prias visões e representações. O encontro que o indivíduo tem com a sua própria linguagem e percepção pode fazer nascer um ceticismo rela - tivamente à própria comunicação que cada um pode ter com os outros e com o próprio filme, quase como se Lynch tivesse lido Wittgenstein, contudo, ao contrário do filósofo, para este ar - tista a desmultiplicação da individualidade con - segue comunicar com outros elementos para lá de si mesma, o encontro com o artista e com a sua obra pode fazer nascer redes comuns entre todos os que desejam entrar no mundo do Black e White Lodge, como nos mostram as comuni - dades e legiões de admiradores deste artista que

afincadamente preenchem teorias e debates na internet. Para existir uma intercomunicação não é necessária a generalização dos signos e senti - dos que se associam a estes mundos, é apenas fulcral mantermo-nos abertos sensivelmente ao que o artista tem para nos oferecer, expan - dindo e conectando a nossa própria linguagem ao objecto estético. A abertura dos enredos lynchianos coin- cide com a expansão e consolidação da nos - sa consciência perante a obra, quase como se houvesse uma harmonização simultânea entre a autodescoberta pessoal e a interpretação la - biríntica das muitas histórias que David nos oferece. Com o cinema de Lynch todos temos a oportunidade de relembrar a madalena de Proust enquanto memória que nasce do bolo e que é partilhada e relembrada distintamente por cada um. Este autor permanece enquanto polímata nas diversas artes que percorre; conti - nua, eremiticamente, a fechar-se no seu estúdio a pintar, a fabricar objetos, a manipular todo o tipo de sonoplastia, a compor novas músicas ou a conceber novas ideias para projectos minima- listas como as suas últimas curtas-metragens ou a fermentar o seu próximo grande empreen - dimento, como é o exemplo do regresso que nos trouxe a Twin Peaks em 2017. Enquanto tudo isto acontece, podemos continuar a usufruir da independência que nasce no artista mas que é transportada e partilhada para todos os que se sentem disponíveis. É um privilégio poder viver numa realidade onde continuamos a disfrutar do trabalho do mestre de uma das maiores re- voluções do mundo artístico, quer seja na com - plexidade global dos arquipélagos estéticos que criou, quer seja na simplicidade comezinha dos boletins meteorológicos que continua a parti - lhar diariamente.

Rodrigo Cruz Silva – Licenciado em Direito (FDUL), mestrando em Teoria da Literatura (FLUL)

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Quadrante,2021

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