Quadrante 14

Dream”, não é uma forma presunçosa de se iso - lar dos “outros” ou de se assumir enquanto ser divino e especial que não necessita do mundo ao seu redor para poder criar, é sim, uma impor- tante lição para muitos artistas e analistas cul - turais – que o ponto de partida para a análise de um autor como David Lynch deve ser o próprio indivíduo e não o suposto sistema que o rodeia, se a análise partir do sistema e não do indivíduo não se conseguirá preservar a substância dis - tintiva do criador. O guru indiano e fundador da meditação transcendental Maharishi Mahesh Yogi aparen- ta ser a única referência que Lynch admite ter para o seu processo criativo, o encontro consigo mesmo e comas suas próprias ideias reflecte-se na independência da sua consciência inventiva construída a partir da meditação que o auxiliou a estar mais próximo de si mesmo. A construção genuína de mundos tão autênticos como os de Blue Velvet (1986) ou Twin Peaks (1990) apa- rentam ter a unicidade de uma mitologia que foi concebida sem pressupostos estéticos ou en- sinamentos formalistas, Jonathan Swift pode- ria piscar o olho à imaginação e adaptação que David Lynch nos traz na sopa de realidades que consegue confeccionar. Uma criança que des - cobriu, com felicidade, através das telas e pin- céis do pai de um amigo, que era possível viver enquanto pintor ou artista, e que ser pintor não era só ser o trabalhador que pinta as paredes das casas, trouxe ao jovem David a explosão de entrada para um mundo que ainda estava por construir; o seu mundo que contaria, simulta - neamente, coma briza optimista da sua infância e do nascimento do rock and roll da década de cinquenta embelezada com a liberdade e euforia aflitiva das décadas de setenta e oitenta. Através desta mescla de tentações e sonhos, Lynch criou mundos que não se conseguem identificar com uma realidade totalmente palpável mas que nos conseguem transportar para os sistemas oníri-

cos que percorrem as vielas dos jogos e baladas deste autor.

Após a visualização de um filme como Mulholland Drive (2001) ou Lost Highway (1997) é apelante aos espectadores, perante o frenesim visual e narrativo, formularem es- quemas lógicos para encontrarem um enredo ou uma mensagem definida pelo seu criador, algo que lhes assegure que existe uma conexão lógica entre tudo o que viram, como se David fosse um recorrente provocador que, por trás das cortinas, tenta esconder a todo o custo a verdade sobre as suas narrativas, quase como aquele malquerido Professor de matemática que oferece aos seus alunos um exercício irre - solvível. Porém, esta busca por uma função de comunicação na arte lynchiana é uma contradi- ção em si mesma, não existe qualquer propósito em definir uma mensagem verdadeira ou falsa através do trabalho deste realizador, pois estas obras são barradas a um significado específi - co, em vez disso, privilegiam-se a proliferação dos sentidos e a capacidade criativa do público. Pode-se dizer que a natureza artística de Lynch transfere-se integralmente para os objetos que consegue criar, pois as bizarras personagens, o constrangimento dos diálogos ou os cenários misturados em paletas e cronologias intempo- rais são alguns dos elementos espiralados que abrem brechas para que a independência do criador se desloque para o espectador, criando assim, um espectador-criador. O sentido in- dependente que faz Lynch acreditar e seguir as ideias da sua realidade torna-se um meio para que cada um de nós, no momento de absorção das suas obras, encontre a sua própria con - cepção do que está a ver, que se encontre com a sua linguagem individual e que não se sinta obrigado a seguir linearmente uma experiên - cia pré-fabricada que ambiciona atingir todos da mesma forma, afirma-nos que o público não pode ser visto como uma mera multidão pron -

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Quadrante,2021

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