Quadrante 14
parece-nos ser esse diálogo que urge defender e reforçar, entre tantas outras áreas da cultu - ra que se vêem ameaçadas há décadas. Assim, ao nos concentrarmos no Cinema Português de hoje, abordamos o problema desta arte e da sua relação com os espectadores, fugindo à quere - la habitual entre um cinema dito de autor e um cinema supostamente comercial - distinção que não existe - e colocando no âmago desta proble - mática as questões da distribuição e do acesso. Fará sentido, primeiro, contextualizar sumariamente a realidade da produção, dis - tribuição e exibição de cinema em Portugal. 1. O financiamento público da produção de cine - ma em Portugal é feito através do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), cujo orçamento é proveniente das receitas geradas por taxas apli - cadas às subscrições dos serviços de televisão por cabo e à publicidade. O dinheiro que resulta destas taxas paga os custos de funcionamento do ICA, assim como os financiamentos que são atribuídos tanto ao cinema como ao audiovisual portugueses. Note-se que nenhuma parte des - te dinheiro investido provém do Orçamento de Estado. 2. Em 2019, registaram-se 185 recintos exibidores de cinema - nos quais se incluem associações/cineclubes, festivais, fundações, institutos de ensino, salas de municípios e os exibidores comerciais - e um pouco mais de 15 milhões e meio de espectadores. Destes recin - tos, as salas de exibição comercial contavam com 475 dos 583 ecrãs em Portugal. Deste nú - mero de espectadores, os distritos de Lisboa, Porto, Setúbal e Braga representam 73%. Na produção cinematográfica em Por - tugal, a curta-metragem é o formato predomi- nante. Visto outrora como um “cartão de en - trada” dos realizadores no cinema, assistimos há muito tempo a realizadores consagrados, como Miguel Gomes, Teresa Villaverde ou (an- tigamente) João César Monteiro, trabalharem
recorrentemente neste formato. Se isto se tor- nou uma marca identitária do nosso cinema, é importante contextualizar que tal se deve, em grande parte, a questões de financiamento. Em 2020, o ICA apoiou 4 longas-metragens de fic - ção e 6 documentais (esperam-se mais 5 no se - gundo concurso de documentários). O resto da produção de cinema emPortugal, que passa pelo ICAmas tambémpor concursos privados como o da Fundação GDA ou da Gulbenkian - que, tan - to percentualmente como em absoluto, apoiam anualmente mais projectos que o ICA, ainda que com montantes menores -, situa-se maiorita- riamente, se não integralmente, no território da curta-metragem. Atendendo à quantidade de curtas-metragens portuguesas distribuí- das comercialmente pelos cinemas entre 2015 e 2020 - quinze, entre as quais se contam sete agrupadas em duas sessões dedicadas ao for - mato em2020 -, questionamo-nos sobre de que forma as novas gerações serão capazes de criar uma relação com os espectadores se os seus fil - mes ficam circunscritos a sessões pontuais em festivais, ficando a maior parte desta produção inacessível ao grande público. Quantos de nós tiveram a oportunidade de ver a inebriante ode ao amor que é Amor, Avenidas Novas (2018), de Duarte Coimbra, ou esse encontro único entre a intimidade e o quotidiano ou entre o cinema e a vida, cujos contornos se esbatem, presente n’ A Casa e os Cães (2019), de Margarida Mene- ses e Madalena Fragoso? Ou os filmes de Jorge Jácome, Rúben Gonçalves ou Helena Estrela? A conclusão que retiramos é que as políticas pú - blicas para o cinema visam propositadamente a produção de filmes para não serem vistos. Se é um facto que raros são os sucessos de bilheteira de filmes portugueses equiparáveis ao das produções norte-americanas - em seis anos, seis filmes nacionais integraram o top dos quarenta filmes mais vistos em sala nos anos de estreia -, será talvez uma simplificação exage -
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Quadrante,2021
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