Quadrante 14

VERBO

Para a Matilde, por me ter mostrado os limites da honestidade.

«Quero forçar todas as fechaduras. Afei - çoar as linguetas como uma criança molda plasticina. Decidir quanto espaço deixo para o olho espiar. Trocar todas as portas por cortinas que, como véus, casariam a publicidade da vida quotidiana com a condição do que é privado. De janelas abertas, deixar a natureza ajustar o ter - móstato da casa, com o quente sol a retocar o amarelo gasto da fachada do prédio e o denso frio as paredes de um vermelho opaco. Abriu a janela e, encostando-se à portada fechada, acendeu o cigarro. O dia acompanhava o automatismo desta sua ação: as nuvens mo - viam-se na mesma direção de ontem, os vizi - nhos repetiam os seus trajetos diários, pisando as mesmas pedras da calçada, e os decibéis da cidade criavam de novo uma cúpula asfixiante. Contudo, tudo isto era um momento de par - tilha, aquilo que cabe a cada um na divisão do seu próprio excesso. Preferia fumar um cigarro de enrolar em mortalha castanha pois durava mais que os industriais e, para além de confe - Só consigo ser honesto a partir de frag - mentos. Só sei fumar.»

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Quadrante,2021

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