Quadrante 14
rir ao auto um cariz artesanal, dava-lhe tempo para conferir as personagens que compunham o seu teatro matinal: no prédio adjacente a Dona Deolinda e o controlo absurdo sobre a rua, dig- no de um romance de Orwell . Qualquer barulho era motivo suficiente para fugir à solidão de sua casa e abrir a janela em busca dos inconvenien- tes que o causaram. Mas haverá melhor vigilan - te? Por quem berrar em alturas de aflição? É um descanso saber que nem a pior das tempestades é capaz de fechar a janela da melhor sentinela. Os vizinhos e a história rezam que quando era jovem, inspirada pela icónica foto de Marina Ginestà no topo do Hotel Colón , começou a fre - quentar os comícios do partido comunista lide - rados por Cunhal, onde acabaria por conhecer o seu marido. Mais tarde, com a vitória de Soares, afastou-se do partido, mas nunca se demarcou dos seus ideais, tendo aberto um restaurante de nome Marina , onde os seus colegas militan- tes se reuniam em tertúlias sem fim. O peso da idade e a morte do marido fizeram-na vender o estabelecimento que, por coincidência, teria o mesmo fim que o Hotel Colón : a sua reposição pela construção de um banco. Desde então, tor - nou-se uma pessoa de desejos simples, que in - corria à vida dos outros para compor a sua. Paralelo ao apartamento de Dona Deo- linda está a loja de conveniência de Gurjit , um imigrante do Bangladesh que com as suas in - conveniências roça o assédio ou um cavalhei - rismo bacoco, deixando para trás um rasto de desconforto ou de curiosidade exótica nos ha - bitantes desta rua. Com poucos clientes, gasta os dias em pequenas distrações que o mantêm ocupado: como cuidar da aparência, ver vídeos de conterrâneos ou brincar com o cão do vizi - nho ao anoitecer a troco de uma cerveja. As ho- ras a fio que passa sozinho não lhe permitem ser indiferente com os clientes, porque a solidão exalta os seus sentidos de companhia. Ao con - trário de outros imigrantes, saiu do seu país em férias e estabeleceu-se por paixão e não obriga -
ção, contudo, a história perseguiu-o: todos os anos um grupo de empresários britânicos ten- ta comprar a sua loja e a subida das ofertas só é equiparada à força com que responde «Não!». E tudo isto era explicado pela singela satisfação que retirava da sua rotina diária, já que era ine - xistente qualquer margem de lucro. Por cima do apartamento de Dona Deo- linda vive uma família, ou duas, ou três; perde a conta aquele que tentar agregar esta enchen - te de pessoas numa família só. O apartamento só difere de uma pousada pela familiaridade das pessoas com o espaço: a intenção e vonta - de dos seus movimentos é controlada e tanto a paz como o caos é-lhes íntimo; ao contrário das pousadas, onde tal igual a fala na terceira pes- soa, há um distanciamento antes da nossa che- gada; o eu, o tu e o muro. Mas percebemos que dominar o espaço é insuficiente quando os flu - xos que o compõemnão se cruzam– ali, as pes - soas agem como se o mar nunca tocasse a areia, deixando a partilha do mundo ao acaso das pe - quenas indecisões, como decidir quem passa primeiro pela estreita porta da cozinha. Resol- vido o confronto, os circuitos restabelecem-se e a monotonia regressava vitoriosa. Tudo isto era suficiente para ele entender que o projetor ainda funcionava, que ainda co - bria a superfície da terra com as mesmas ima- gens passadas. Aguardava por umpercalço, algo que fizesse o rolo saltar uma pulsação, estando a sorte com os atentos que encontram estes in - tervalos hesitantes de realidade - os interstí- cios. Fechou a portada e viu-se só. Era o poder do silêncio na sua perfeita magnitude que, mo - nopolizando a sua casa, abria hostilidades se- melhantes ao sigilo monástico dos seus anos de catecismo. Aí, aprendera que a fé é crer no que vemos e no que não vemos, na razão e na es - perança. Achava razoável acreditar que o silên - cio era tanto omissão como barulho e a solidão tanto abandono como amparo, assim como era de esperar que tal agonia não fosse um dia um
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Quadrante,2021
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