Quadrante 14

problema. Para ele, Cristo já tinha sido ultra - passado. Preferia cultivar a sua própria agonia a seguir o exemplo dos seus ancestrais espanhóis no culto de um Cristo agonizante. Guardava os anos de leituras da cartilha numa caixa fechada, com os respetivos batismo e crisma, com exce - ção das vezes em que se deparou com Cristo nos escritos, não o homem, mas a alma, e consigo guardava apenas essa possível prova da imorta- lidade do espírito. De momento, valia por si só o Verbo ser. Despiu o pijama e caminhou nu para a sala. Compactuava comBerger: estar descoberto é ser-se uno, por isso, no momento de escrever, expunha-se, acreditando ser a melhor forma de ser honesto. Este gesto quase supersticioso acompanhava as varizes de Victor Hugo , que es - crevia de pé apoiado numa mesa ou a literatura horizontal de Proust , que preferia redigir deita - do. A televisão estava ligada e as eleições ocupa - vam todo o mediatismo - os resultados seriam revelados essa noite. Via no processo eleitoral uma enorme simbologia. Para os gregos, o sím- bolo era um sinal de reconhecimento - um obje- to divido em duas partes, entregue a duas pes- soas que se tinham de separar e, desta forma, reconhecer-se-iam facilmente no futuro. Mas há um significado mais complexo na face míti - ca do símbolo, algo que aponta para além do seu significado imediato: uma ponte entre o incons - ciente coletivo o consciente individual, tal e qual as eleições, onde decidimos conscientes o nosso futuro com o resto de uma população que nos é anónima, inconsciente. Escreveu: «Todas as revoluções são coloridas, pro - duções sensitivas de uma só impressão. Falar da teoria das cores ou de política é igual - ambos são fenómenos fisiológicos, de caráter indivi - dual, que expandem para uma escala maior, um reconhecimento físico. Contudo, a cor supera a política devido à sua constância, umpadrão pro - tegido pelo sistema nervoso que é invariante às

diferentes formas de iluminação. E eu já perdi a conta das vezes que falharam os fusíveis dos cir - cuitos democráticos. Talvez a culpa seja da luz.». Desejava publicar uma obra em vida, mas nunca considerara fazer uma antologia dos seus fragmentos, impedido talvez pelos seus maiores inimigos: a originalidade, «dar mais do mesmo é retirar espaço ao novo», ou a verdade, «escrevo sobre o que não conheço». E tudo isto era uma luta justa e compreensível, uma procura pela uti- lidade da felicidade, já que não conseguia ima - ginar-se feliz sem o bom que é desejar; ou uma procura pela felicidade do útil, já que a sua felici - dade era a realização dos seus desejos. Vivia esta guerra intensamente desde que semudara para a cidade, ao contrário da sua antiga vida de campo, onde levara uma existência pacata e a natureza nunca o ocupara com estes problemas. Geria o lagar de azeite que herdara dos pais e, nos tem - pos livres, escrevia no interior deste espaço ar - caico, mal iluminado pelas bruxuleantes chamas das candeias de azeite, obrigando-o a permane- cer imóvel e ajustando o olhar à densa penumbra que nele pairava. Neste local não escrevia nu por questões de higiene, contudo, o decoro da natu - reza e o seu sentido de harmonia, permitiam-lhe por si só ser pragmático e inventivo. Dificilmente abalavama sua paz, graças à proteção dos exten - sos olivais que o rodeavam. E ele sabia que não tinha sido o primeiro a usufruir desta magia: os gregos já tinham consagrado a oliveira a Atena e os romanos a Júpiter e Minerva ; a Cristandade como santo óleo na lâmpada do Altíssimo; assim como os seguidores do Alcorão, que ajustaram o eixo do mundo a esta árvore. Esta fórmula enig - mática cultivava tanto a terra como a si mesmo e a sua vida brotava assim: pacata e serena. A inspiração consumia-o porque o cam - po possuía uma panóplia imensa de contos, di - ficultando, às vezes, o seu discernimento pelo que era real ou imaginado. Recordava em par - ticular a história de uma rapariga que, por ser

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Quadrante,2021

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