Quadrante 14

a mais bonita de todas, estava encarregue de transportar a bandeira de tecido, ornada com objetos de ouro e prata, que anunciava o final da apanha da azeitona. Endividado, o seu pai en- tregou-a como bem de penhora e Eva teve de limpar as botas do patrão todos os dias, ajoe - lhada no chão e usando apenas um lenço, mas, humilhada, decidiu ripostar. Esperou pelo cair da noite e dirigiu-se ao barracão do proprietá - rio onde estava armazenada toda a azeitona de colheitas passadas e, com a ajuda de um trator, colocou todas as vasilhas dentro do atrelado. Resguardada pelo silêncio das estrelas, desapa- receu estrada fora cantarolando: Ao amanhecer, o céu cobriu-se de nu- vens e os estampidos dos trovões aproxima - ram-se da aldeia que entrou em alvoroço, não de susto, mas de cobiça. «Deus está pelos po - bres!» gritavam eles com cestos e sacos. Atola - dos pela lama, corriam pelo campo através de veredas e atalhos para apanhar a azeitona que caíra. Não havia barreiras e no meio do sussur - ro da tempestade ouviam-se pragas e ameaças entre os proprietários e os aldeões. «A azeitona que cai antes dos Santos é de quem a apanha!» berrava um deles. Deus também estava do lado de Eva que, com tal distração divina, conseguiu fugir antes que algo pudesse ser remediado. As más línguas contam que fez uma fortuna e foi viver para a cidade. Esta história era um de muitos exemplos de algo que não conseguia distinguir entre real ou imaginado e essa era a beleza do mito, que, respeitando uma espécie de princípio de con- servação, fazia surgir dentro de si mesmo ou - tras narrativas, com fórmulas que se adaptam a nós – ouvintes e contadores. Esta história era Tome lá esta penhora Criada em noite bela Fica o senhor penhorado Pela mão de uma donzela

especial porque na sua infância Eva transfor - mara-se em matéria viva, andante. Ao passear pelas ruas da sua aldeia tinha breves encontros com ela, onde estendia a mão tentando tocar - -lhe e Eva, fugidia, afastava-se com um sorriso. E isto nunca colocou em causa a sua sanidade – era uma criança e por isso a realidade não o podia censurar. Inocente, fugia do mundo, mas o imaginário, como nos conta a matemática, é um número complexo que tem parte real igual a zero. O tempo passou e Eva não conseguiu fugir mais à história Sentado nu na sala, apercebeu-se que as interações da vida quotidiana implicam gestos específicos; não se desenrolam com esponta - neidade e participam numa ordem ritual que todos esperam ver respeitada, mas, apesar de fruto da sua imaginação, arrepende-se de não ter agarrado subitamente a mão de Eva, de ter traduzido com o seu corpo a vontade de ir mais além, de reclamar um afeto que abrisse os invó - lucros mais íntimos dos dois. Comamaioridade, percebeu que há um limite nas orações escon - juratórias desta árvore mágica que é a oliveira – contra trovoadas ou exorcismos, benzeduras ou sortes divinas, mas o que não pode ser visto permanece invisível. Sentiu com os seus pés o frio incómodo dos azulejos que, num padrão fosco de azul e branco, cobriam a superfície da sala, estenden- do-se até às bibliotecas, que não eram mais do que quartos com estantes preenchidas por li - vros. No fundo, realizara, como tantos outros, um dos sonhos de Borges . Esta curiosidade in- telectual movia-o de tal forma que, em certos momentos de imersão mais profunda, encon - trava-se totalmente alienado do resto da vida, como Peter Kien sem Therese . De tempos em tempos, precisava de moderar estas visitas ao seu mundo interior, porque distante das preo - cupações quotidianas, sufocava quando con - frontado de novo com a realidade.

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Quadrante,2021

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