Quadrante 14
«O chão é a verdadeira narrativa de uma casa, um areal acarinhado pelo mar dos nossos movimentos. Se a história surgiu após o apare - cimento da escrita, o chão chegou primeiro para contar as nossas viagens. A graça da sua quietu - de torna-o o melhor ouvinte possível, mas tam- bém o melhor contador – os posteriores ouvem o silêncio das fábulas imortalizadas por uma mancha de tinta, uma assoalhada quebrada ou a guarnição de uma porta carcomida pela humi - dade. Tudo isso é o reflexo de uma contínua pas - sagem de testemunho. Só depois me interessa o suster do alicerce ou a proteção do telhado.». A sua realidade era semelhante à narra- tiva do chão; os livros andavam por ele, abrindo sulcos às longas horas de conversas com as rea- lidades escritas por outros. Os autores que lia e a vida das suas personagens tomavam a forma de água e ocupavam os vazios da sua própria história. Ao contrário de Dona Deolinda, que adornava a sua vida com realidades próximas, ele via-se perdido nos mundos imaginados por outros. Podia acordar e beber cinquenta xícaras de café como Balzac , certo dia apaixonar-se por chocolate como Joyce ou só conseguir escrever a fumar um charuto como Mark Twain ; peque - nos gestos que faziam da sua biografia um re - sumo de outras vidas alheias. Quando se sentia incompleto, procurava esta beleza que, achava ele, completava a existência das pessoas que admirava. Desta forma, talvez também ele pu- desse ser admirado por Negreiros , porque não existiam em si limites na quantidade de mun - dos que nele podiam habitar. E isso incluía o bom e o mau que o universo nos oferece. Saía de casa nos dias em que o sentimento ultrapassava a palavra e procurava algum conforto juntando os fragmentos recortados das paisagens da ci- dade que, como um puzzle , ocupavam a sua pa- ciência e estimulavam os seus sentidos. Quando o inverso se proporcionava e as palavras pro- curavam retratar estas emoções, regressava ao
conforto de sua casa, protegido de novo pelos livros. E este estranho equilíbrio manteve o seu barco à superfície de sentimentos indesejados, durante tempo suficiente para o fazer acreditar que seria sempre assim. Contudo, nas últimas semanas começara a sentir o casco quebradiço e, nos momentos de maior aflição, remendava a quilha da sua embarcação a qualquer custo. Como Job , sofria com a sua própria paciência, mas mantinha-se fiel aos seus remendos. A hora de almoço aproximava-se; passou pelo quarto para vestir um roupão e dirigiu-se à cozinha para preparar o estufado de favas com entrecosto, uma receita ensinada e apurada pela sua avó. Lembrou-se de alguns dos preceitos da ordem pitagórica e percebeu, para infelicida - de sua, que Pitágoras não o podia acompanhar nesta refeição: «Não posso comer favas ou to - car num galo branco. Não posso partir pão, nem posso comer um pão inteiro. Não posso apanhar o que caiu ou passear em estradas. Diógenes Laércio conta que Pitágoras morreu ao deparar- -se comum campo de favas, pouco depois de ter fugido de ataque inimigo. Fiel aos seus ensina - mentos, recusou-se a percorrê-lo e foi morto. Como os princípios tornam as pessoas peculia - res!». Colocou a comida a cozer em lume-bran - do e foi tomar banho. O ato de banhar constituía uma das so- luções viáveis que conhecia na arte de escapar aos problemas. O humano é, por origem, um fu- gitivo, mas o problema da sua fuga está em sa- ber para onde fugir. E existe um leque vasto de opções: a fuga através da religião, do trabalho ou do vinho, por exemplo. A religião não o satis - fazia porque ela própria era uma fuga ao sórdi - da da vida, e o refúgio da alma não assegurava, de momento, o paraíso do corpo. Pelo trabalho fugia à pobreza e não ao espírito, apesar de en - contrar algum consolo na sua arte, os seus ren- dimentos vinham de propriedades herdadas, tornando esta opção inviável. E o vinho vêm sempre de mãos dadas com a ressaca. Por ou -
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Quadrante,2021
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