Quadrante 14

tro lado, no banho importa a limpeza e a aten- ção para com o corpo, tornando os problemas da alma secundários. O automatismo dos braços que escovam os despojos do dia, ao lado de uma mente ocupada em manter este mecanismo a funcionar, criavam um momento de transcen- dência incompleto, entre o físico e o espírito. Nesse espaço de tempo abstinha-se também de pensar na simbologia da água, para apenas usu- fruir desta evasão que era só dele. Terminado, vestiu-se e retirou a comida do lume. Como costume, empratou num serviço de fina porcelana, debruado a ouro e pintado à mão num padrão de azul e branco. Não era o seu único conjunto de loiça,mas concedia à refeição o requinte que o paladar precisava. Tinha-lhe sido oferecido pelo seu amigo Júlio que, anos antes, o trocara por uma pintura. Conhecera Júlio numa exposição de umartista cujo nome não conseguia recordar. Era uma pessoa ambiciosa e por isso in- satisfeita, mas não fora educada assim. O seu pai, um vidreiro, realizou as suas ambições limitan - do-se a sobreviver e nunca teve possibilidade de lhe pagar uma educação universitária. Mas, de - cidido a graduar-se, escolheu o ramo da pintu- ra, onde, por falta de alunos, ofereciam bolsas de estudo. Ser atraído, contra vontade, para o mun- do das artes foi inicialmente um processo com- plicado, mas conquistou-o rapidamente – «é uma profissão onde a beleza não se cansa.», di - zia. Esta independência concedera-lhe o direito à solidão, por ser uma exceção ao comum, liberta - ra-se do pressuposto que os humanos estão con - denados a sofrer deste problema. E este era um dos muitos motivos porque apreciava estar com Júlio, sentia que tinha muito a aprender. «Não há métodos para impedir a solidão», explicava, «só há formas de diminuir omedo de estar sozinho», e concluía: «Tens de ganhar o direito a estar só e perceber os deveres que a tua solitude acarreta.». Há hora da refeição era inevitável es - preitar a vida da mulher do apartamento adja- cente, já que a mesa da cozinha estava coloca -

da de frente para a janela; todavia, como num programa de televisão, tentava gerir o conteúdo que lhe era oferecido - se as cortinas estivessem abertas e ela se despisse, continuava a sua refei- ção na sala. Próximo de terminar o seu prato de favas, a mulher saiu da casa-de-banho, enrola- da numa toalha que lhe cobria pouco mais que o tronco, deixando à vista a pele morena que, só ao olhar, já parecia suave. Seguindo o seu prin- cípio, apressou-se a comer e colocou o prato na pia, mas antes de sair da cozinha, ao despe- dir-se com um piscar de olhos, reparou que a mulher o olhava fixamente, nua. Os seus seios empertigados apontavamna sua direção, emol - durando a tranquilidade que o resto do corpo transparecia - era um ato pensado, ela queria ser admirada e causar admiração. Não se trata - va de um acenar narcisista, mas de uma simples contemplação mútua. Permanecia quieta, com os braços estendidos ao longo do perfeito corpo e, em gesto de convite, desdobrou lentamente um sorriso de pérolas brancas – o constrangi - mento estava quebrado. Ele aproximou-se da janela e, enquanto tremia de espasmo, come - çou a despir-se. Não sabia o porquê, mas pa - recera-lhe o mais correto a fazer, um ajusto no equilíbrio da contemplação. Em pé ou corpo de igualdade, imitou a mesma posição da mulher, estendendo os braços e abrindo um sorriso que, pelo tabaco, não era tão luzidio. Permaneceram assimdurante alguns minutos, a decorar as for- mas, os pequenos movimentos e o efeito da sua repetição. Sentiam que tinham perdido toda a sua individualidade no corpo do outro, porque eram tanto espelho como quadro. Fechou os olhos e pensou: «Se contasse, ninguém acredi- taria. E que bom que isso é. Uma boa vida é uma possível mentira. Engano a ilusão com histórias honestas e vivo as fantasias que outros só ima - ginam.». Quando abriu os olhos a mulher já es - tava vestida e tratava das lides domésticas como se nada tivesse acontecido. Tal foi a despedida abrupta que, por momentos, sentiu-se usado,

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Quadrante,2021

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