Quadrante 14

como se aquelameditação de corpos tivesse sido um jogo inútil. Mas, tal e qual um jogo de azar, o resultado dependeu do acaso, por isso, soube de imediato que estava a arriscar quando entrou em jogo. Vestiu de novo as roupas e, resignado, saiu de casa. Caminhava em direção ao café e, para se distrair do ocorrido, refletia: «Nas bibliotecas, onde os livros são utilizados por mais que um leitor, o desgaste das obras é fatal. Colocou-se a hipótese de serem impressas edições especiais com papel de trapo, devidamente encaderna- das, evitando gastos maiores na substituição dos exemplares. Gostaria que os meus frag - mentos fossem editados deste modo, para que as minhas palavras não morram.». Sentou-se na esplanada e pediu um café sem princípio. «É deprimente que a maioria das editoras dedi - quem o seu talento à reimpressão de clássicos que já possuem dúzias de edições satisfatórias. O que resta de nós, anónimos?». Os seus pés pousavam sobre o cemitério de cigarros quepreenchiade lutoas ruas da cida - de. O cheiro das beatas queimadas causava-lhe náuseas apesar de fumar e, por isso, tornara um hábito beber o seu café sem afastar a chávena de ao pé da boca, evitando os odores indeseja- dos com o cheiro achocolatado dos grãos tritu - rados. A esplanada estava repleta de andorinhas que subiam para cima das mesas em voos rasos, abanando a parte inferior das caudas brancas, como se quisessem limpar a sua cor de fuligem. No centro da sua mesa, por cima do pires va- zio, descansava uma jovem andorinha, com as suas delicadas penas azuis. Permanecia quieta, em silêncio, e fitava-o com uma tez própria dos humanos que tentam ler a vida de outros pela sua expressão. Começou a aproximar-se len - tamente, sem receio, nunca desviando o olhar. Imóvel, recordou a mulher e a sensação de paz que dela emanava, semelhante à expressão do pássaro que parecia tentar compreendê-lo sem julgar. E à medida que a memória se aclarava,

a pequena andorinha transformava-se no cor - po da mulher, com as asas a estenderem-se em longos braços, o bico desdobrando num sorriso luzidio, as patas crescendo em pernas e os seios florescendo do seu pequeno tronco branco. No fim da metamorfose, a mulher estava no topo da mesa, nua, e o jogo de contemplação regres - sara. Olhou ao seu redor e estava tudo normal, sabia que era fruto da sua imaginação, mas, a cada piscar de olhos, a mulher multiplicava-se nas outras andorinhas e deu por si a ver deze- nas de mulheres espalhadas pela esplanada em diferentes posições e sítios. Subitamente, uma senhora desequilibrou-se, deu um encontrão na sua cadeira e a realidade regressou. Para sua surpresa, partilhava bastantes semelhanças com a mulher do apartamento adjacente - uma cópia envelhecida. Como Agnès de Kundera , re- ceava que esta mulher se tornasse um objeto de fascínio insondável e a longo prazo uma limita- ção na tranquilidade do seu quotidiano. Estaria ele amaldiçoada a que tudo se reduzisse a uma memória? A uma associação indestrutível en - tre o mundo e aquela mulher? Estarrecido, não conseguia controlar o olhar que, a cada movi - mento, definia ainda mais as parecenças en - tre as duas. Só agora conseguia compreender a prisão do feitiço de Anna e Emma sobre Tols- tói e Flaubert . Levou as mãos à cara para parar de olhar e, sentado na cadeira, colocou-se em posição fetal, criando um segundo muro com os joelhos sobre as mãos. Mas era inútil. Como uma criança, afastava os dedos e as pernas para a poder contemplar, sempre receoso que ela re - tribuísse o olhar inesperadamente. Permaneceu neste delírio durante horas e nem a distração de um cigarro o salvou. Pousou o dinheiro do café na mesa e fugiu. Tomás Longo - Músico

28

Quadrante,2021

Made with FlippingBook Digital Publishing Software