Quadrante 14

mes Baldwin (como as de cada um) acompanha- ram-no, formaram e foram formadas pela sua experiência. A sua experiência é a sua história e é o mais pesado testemunho a carregar, porque o torna responsável pela vida das suas memó - rias; pela vida da sua moral; pelas vidas que o representam e pelas vidas que dele dependem. O testemunho é um importante ato po- lítico – é ponte do diálogo entre o experiente e o espectador, via comum para o conhecimento e para a união. Ainda que ninguém soubesse o seu nome, o filho nativo soube que viveu momentos irrepetíveis da história da nação. Mesmo que não na qualidade de protagonista. Assumiu, assim, o papel que cedo renegou, por não acreditar na possibilidade de derrotar as suas circunstâncias. Encontrou um novo vocabulário e expôs-se – à sua realidade, às ruas de Harlem (good kid, mad city), ao medo, aos modos de ver, aos seus ami - gos e família, às suas verdades. Num exercício de autodefinição, Baldwin emancipou-se dos rótulos alheios e deixou-nos com imagens inesquecíveis (não esquecer a morte de Rufus, em “Another Country”, inspirada no suicídio do melhor ami - go). Agradecemos a Baldwin pela autenticidade e pela coragem de se conhecer e, com isso, de nos ajudar a olhar ao espelho. Agradecemos o ativismo e o conteúdo para a questão racial na América, na forma mais humana possível – como contador de histórias. Em 1970, uma equipa de realizadores en - controu-se com James Baldwin em Paris, onde tinhamcombinado gravar umdocumentário a re- tratar o escritor, deixando de parte a figura políti - ca. A sua carreira tinha começado emParis, cidade que serviu de cenário para alguns dos seus livros, pelo que o ponto de encontro não gerou muitas dúvidas. Assim, depois do acordo no objeto e na forma, os problemas começaramna ação. Logo no início do filme, percebemos a pouca recetivida - de de Baldwin em protagonizar o documentário,

e o seu desinteresse geral pela carreira na escrita e pela cidade de Paris. Confusos, hostis, a equipa de produção foi levada para o Palácio da Bastilha, a pedido de um dos estudantes afro-americanos que Baldwin fez questão que o acompanhassem. O propósito? Ilustrar que a prisão derrubada há tan - tos anos por alguns não foi derrubada para todos, e que a estamos permanentemente a reconstruir. James Baldwin, em Paris, em França, longe da América, em frente ao Palácio da Bastilha, queria prestar a solidariedade humana e o posiciona- mento político perante todos os que viviam apri - sionados no seu país de origem– física e mental - mente. Ainda frustrados com a viragem do leme, os realizadores perguntaram a Baldwin: porque não nos deixa projetá-lo através do seu trabalho, em vez de a si, tal como é? “I’m perfectly willing to, but I don’t see how you can do it. You know. I’mnot so much a writer as I’m a citizen. And I’ve got to bear witness to something which I know”. Assim descobrem, finalmente, os realizadores ao que vieram e ao que veio a originar o documentá - rioMeeting the man: James Baldwin in Paris. Eaqui chegamos à forçapolíticadaarteeda criação. Já nos avisaramque omaior vício de todos é a superficialidade, e, por isso, o fabrico plásti - co de ideias que nunca tivemos; ou a concertação comos cânones; ou o escape de tratar vulgarmen - te lugares comuns; ou forçar umdiscurso agradá - vel de e para amaioria, resultando numa imitação insignificante; ou o isolamento absoluto do artis - ta na caverna, resultando numa negação da pró - pria vida. A vida de artista não está fácil (e, para o efeito, a vida de qualquer criador ou de quem se propõe a passar uma mensagem) – nunca o foi, já o sabemos, mas para propósitos de análise con - temporânea acreditamos que também esta época é desafiante (desinvestimento cultural generali - zado, quer no domínio público, quer no privado). Que eu saiba, até agora, um romance não enche o estômago e o artista está entre a espada das exi - gências dasmassas e a parede da sobrevivência. Se

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Quadrante,2021

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