Quadrante 14
desamor em dois atos
“No fundo, um escritor é um bocado um ladrão, um gatuno de sentimentos, de emoções, de rostos, de situações” António Lobo Antunes omenino órfão sempre gostara do carvão e do cheiro do lacre fundido. dedicavamuito do seu tempo à romanesca arte dos envelopes selados e endereçados a ninguém. aprendera, só e cedo, a importância dos motes e tudo lhe era inspiração, tudo era convertível em sílabas, em palavras, em frases. os dós do sino da igreja tornavam-se dominações, dotes, dores, dominós, docas; os gras - nares dos patos do lago eram quases, quadrilhas, quadrantes, quartzos, quartos; qualquer melodia seria apenas um excerto bem engendrado de um conto ou de uma ode mitológica. o menino órfão não vivia num sítio bonito, não conhecia se não mares de cartão e fiordes que cortavammais a pele que a respiração. fazia muito frio no lar do menino órfão o que dificultava, mas não impedia, as diversas pequenas expedições deste até à vila. o menino órfão, quando não estava de esferográfica em riste, debruçado à escrivaninha, gostava de ler. lia histórias. as filosofias interessavam-lhe pouco, eramapenas devaneios das men - tes de outras pessoas, muito bem desenvolvidas em jeito de verdades universais. aos quinze anos, eram poucas as tramas clássicas que ainda não lhe haviam corrido a vista e, não o tendo, teria de ser por falta de oportunidade. as más-línguas diziam que o menino era um calão, um imprestá - vel, uma subdesenvolvida nulidade na vida. eram-lhe criticadas as atividades inúteis, tanto pelos seus superiores – que almejavam a que este aprendesse uma profissão verdadeiramente digna, que largasse os recados que fazia ao jornal em troca de uns tostões e se dedicasse, como os restantes meninos, ao cimento e aos poços – como pelos seus pares, que não compreendendo o seu mundo,
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Quadrante,2021
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