Quadrante 14
o ostracizavam como se ele fora um leproso. o menino órfão fora muitas vezes levado a cenários de trabalho, verdadeiramente de trabalho, para que este absorvesse o trabalho árduo, desenvolvesse o espírito de sacrifício e alcançasse a plenitude de um homem. mas não havia, para si, maior recom - pensa do que ter nas suas mãos, folheando com os seus dedos, o jornal quinzenal que considerava ter ajudado a construir (se ele não tivesse ido à drogaria levantar o óleo para aquele modelo espe - cífico de máquinas de escrever, o jornal não existiria). aos domingos, no lar do menino órfão, faziam-se bonitos almoços. os frades sentavam-se diante da comida fumegante, seguravam as mãos dos meninos e teciam enaltecedores agradeci - mentos pelos tectos sobre as suas cabeças e pela luz guardiã dos espíritos daqueles que não tinham mais quem os guardasse. era o único dia da semana em que os refogados cheiravam como tal, e não apenas como uma amálgama de panelas confusas. havia uma toalha de linho com os cantos prateados que adornava a longa mesa e, apesar do silêncio que reinava durante a refeição, a envol - vência quase-carinhosa e tendencialmente familiar era audível para o menino órfão. não que este sentisse ou soubesse sequer sentir um amor fraterno, quiçá paternal, enquanto roçava os talheres nos pratos de domingo, mas havia um certo calor que quebrava o já costumeiro gelo e, certamente, não seria só das panelas. quando o almoço terminava, os meninos mais crescidos tinham ordem para descer à vila sem necessitar de propósito, em passeio. os meninos mais novos eram levados pelas senhoras até aos jardins do lago de gelo. o menino órfão fazia sempre os seus passeios, mas não, sem antes de sair, abrir sempre um caderno para escrever, da forma mais precisa possível, as orações de almoço dos frades que, verdade seja dita, eram sempre diferentes e por vezes até pouco litúrgicas e mais poéticas. aquela linguagem pouco mundana e muito bailarina tinha, para o meni - no, um encanto particular. não o suficiente para o levar a prosseguir uma vida de clérigo, como já lhe havia sido proposto, dada a sua bonita caligrafia e inacabável vontade de leitura. havia alturas em que o menino órfão perdia os seus privilégios de passeio domingueiro, por ser apanhado escapulido do lar em alturas indevidas. nesses domingos, o menino ajudava as se- nhoras na lavagem da loiça do almoço e na faxina do lar. aprendia muitas cusquices que mais tarde replicava nas suas cartas. sabia tudo sobre os biltres das retrosarias da vila que queria trocar rolos de elástico por serviços atrás do balcão, das pobres tontas que iam na conversa e dos filhos bastardos e tardios das pobres tontas, que haveriam de morar nos seus ventres até que as parteiras fizessem o inverso do seu trabalho. a mulher velha, a tirana da cozinha, contava muitas vezes a história do tremor de terra que lhe tinha lavado as pernas em sangue e levado o seu único laivo de esperan - ça consigo. contava que, nos seus tempos áureos, havia sido lavadeira para as senhoras ricas que passavam as estivas temporadas na zona saloia e que carregava alguidares cheios até aos tanques dia-sim-dia-sim. numa dessas ocasiões, havia conhecido um jovem que estudava as engenharias, muito altivo e sedutor, com quem tinha enlameado os lençóis. a notícia do atraso da velha tirana, na altura jovem lavadeira, só correu quando o jovem já havia retornado à civilização. muito ferido no seu ego, enviou-lhe uma carta, que fora lida em voz alta por uma das suas patroas, já que a pobre lavadeira não tinha tido tempo para qualquer instrução. o conteúdo deixava muito a desejar no que ao cavalheirismo diz respeito. numa ode à irresponsabilidade e malvadez, astúcia e olho gordo, in- consciência e ignorância da lavadeira, o proto-engenheiro recusava-se a aceitar o filho. como se de uma punhalada se tratasse, a lavadeira lançou-se num pranto que não haveria de cessar tão cedo.
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Quadrante,2021
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