Quadrante 14

pegara no alguidar desse dia, rumando ao tanque, num choro incontrolável. foi nessa altura que a terra tremeu. não percebendo o que se passava, a lavadeira deixou cair o alguidar de barro, que se desfez em pequenas telhas. entre as suas, corria-lhe o sangue daquele que não foi e, que por teimo - sia de outros, nunca poderia ser. no auge da sua vergonha, a lavadeira colocara a roupa às costas e retornar à patroa para lhe contar o que sucedera. a história da velha tirana terminava sempre aí. só adiantava que se tinha mudado para aquele frio porque nunca mais queria recordar o cheiro do san - gue ao calor. o menino órfão gostava das histórias. por vezes pareciam saídas dos seus romances. no en - tanto, não era por isso que aquele castigo deixava de o ser. na verdade, o menino órfão tinha uma paixão desconhecida pelos que o rodeavam, que apenas podia ser exercida nas fugas de domingo à tarde. no centro da vila, depois de passado o mercado que só estava aberto no verão, e em frente à estátua episcopal, havia uma modesta sala de espetáculos. a pacata vila nunca aceitaria fazer da- quela sala um ex libris nem, tão pouco, um convite à visita de estrangeiros. sempre muito fechados em si mesmos, como se possuíssem uma pérola rara, a vila dava pouca vida à sala, sendo apenas habitada por companhias itinerantes, que levavam as suas peças de teatro aos poucos que nutriam algum interesse. esporadicamente, havia concertos de coros, ou uma orquestra ou outra, mas es - tavam longe de ser magnânimos. o menino órfão, moço de recados do jornal, tinha o acordo com os seus patrões de que, sempre que houvesse teatro na vila, estes lhe dariam bilhetes em jeito de pagamento pelo seu trabalho. nos meses em que não havia, particularmente no inverno, o menino órfão nada recebia, mas isso pouco lhe importava, uma vez que não havia riqueza no mundo que se pudesse equiparar aqueles quadros vivos. o menino órfão vivia encantado com a bajulação que o teatro fazia a si mesmo. raras eram as peças em que o teatro não dizia, pelo menos uma vez, o seu próprio nome, ou fazia referências à sua necessidade, ao despeito que a generalidade das pessoas nutria por si, à raridade que se tornara, à arte superior que se achava. os atores nada mais eram que bonecos de ventríloquo nas mãos das madrastas encenações. contrariamente à música ou aos bailados em que, além de permitido, era aconselhável que o intérprete fizesse das composições suas, no teatro todos os aspetos dos que por ele davam a cara eram cronometrados e medidos à milésima pulsação. o menino órfão achava que os encenadores tinham de ser doidivanas contro - ladores, vivendo constantemente em ponto de rebuçado, atreitos à hipertensão e queda de cabelo. se havia coisa que o teatro detestava, era não ser o centro das atenções. as pancadas atrás do palco, os sopros do ponto, o metrónomo do contrarregra, os passos dos atores, as pausas dos atores, e o menino escrevia. se um dia o sonho não viesse, não faltariam provas de que o sonho existiu. o me - nino órfão descia à vila, com as suas melhores calças, cosidas por três vezes no interior das pernas, com a camisa dos colarinhos perfeitamente engomados, e os casacos de malha sobrepostos, de caderno enrolado ao bolso interior, com uma vivacidade muda, própria de quem se prepara para se deixar deslumbrar. não havia vez em que o teatro o desiludisse. o seu coração batia ao ritmo dos gritos despregados, ao nome do teatro que embatia na modesta plateia e ecoava nas suas próprias paredes. todo o seu sangue em ebulição, numa sinfonia frenética impossível de pôr numa partitura. o menino órfão queria ser dramaturgo. queria escrever e ouvir as suas palavras serem re - petidas à exaustão até ao infinito da outra ponta da sala de espetáculos. pensava histórias, tecia - -as em carvão, queimava-as todas no fim, como se ganhasse consciência da altura da cordilheira

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Quadrante,2021

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