Quadrante 14

que quisera escalar. mas há um problema quando se sonha com teatro: por muito fundo que se resguarde esse amor, basta um pequeno símbolo, uma pequena lembrança, para que ele emerja à superfície em histeria e convulsões, mais forte do que nunca, irritado por ter passado tanto tempo fechado. o amor ao teatro é uma bomba-relógio controlada a respirações. do jornal costumava le - var para o lar papel de cores e gramagens diferentes, envelopes mais e menos coloridos, para poder fazer cartas diferentes, organizá-las por pensamentos, lugares, sensações, pessoas. havia quem pensasse, no jornal, em formá-lo, em fazê-lo jornalista, dado o seu gosto pelas letras e a mudez implacável de bom ouvinte. todos tinham destinos bons, sólidos, viáveis para o menino órfão, toda a gente parecia ter uma envolvência ideal para o colocar, na qual ele seria verdadeiramente alguém, no conceito real, térreo, pleno, do que significa ser alguém. era a concretização do velho chavão “assentar os pés na terra”. no lar, costumavam ensinar ao menino e aos outros meninos órfãos que o sonho devia ter a mesma medida que próxima passada que estes assentassem no chão. qualquer extravasão levaria a lamúrias, frustrações e uma vida repleta de desesperos. para o menino órfão, a ironia estava em ouvir aquilo no sítio que servia de jazigo a toda a esperança. no meio de tantas formas de vida aceitáveis e lúcidas, certo era que omenino órfão queria era escrever teatros. imagi - nar cenários, desenhar emoções, marcar andamentos, fingir revoluções, guerras, amores e mortes. o menino órfão queria viver compondo o que a sua cabeça murmurava. o caderninho enrolado no bolso servia para gatunar momentos. não havia, no menino órfão, qualquer irritação corriqueira com o estado da sua vida. no máximo, havia um sentido de gratidão permanente pelos obstáculos. mas o verdadeiro problema desta trama entrará aqui: certo dia, a sala de espetáculos fechou. a vila considerou-a mais dispendiosa que lucrativa, um desperdício de um espaço que certamente poderia ter uma utilidade comunitária muito superior, as companhias itinerantes desinteressa- ram-se pelos fiordes e os fiordes pelas companhias itinerantes. o menino órfão, no domingo da praxe, descera à vila. era um dia desconfortável, de vento capaz de cortar veias. nesse sábado tinha falecido um dos frades que costumava dar as melhores orações de almo - ço e todo o lar estava coberto de uma mágoa quase bélica. as senhoras da cozinha lavavam a loiça em lágrimas, os cantos prateados da toalha serviam para apertar entre os dedos com toda a força para impedir o choro, os meninos mais pequenos, alheios ao sucedido, questionavam os meninos mais velhos acerca do peso do ar que os rodeava e ninguém lhes queria responder. a única pessoa sem olhos turvos era a velha tirana, cujo coração fora há muito trocado por um rochedo. ao menino órfão toda aquela tristeza era superada pelo facto de há muito esperar uma desculpa para poder as - sistir a uma peça de noite. dadas as circunstâncias do seu horário de liberdade, nunca tinha assisti - do se não a matinés, que, mesmo assim, por vezes se prolongavam até um pouco fora da sua hora. estando o lar preocupado com os preparativos do velório, das missas, de tudo aquilo que é típico de um funeral com aquela envergadura, mais fácil seria escapar-se por volta da hora do jantar, sobre a desculpa de a tragédia lhe ter levado o apetite. estaria toda a gente concentrada na sua epifania sobre a efemeridade da vida humana, e o menino órfão conseguiria sair sem que desse pela sua falta. e assim o fizera. desceu à vila. já não o fazia há muito tempo, dado que o inverno ainda aperta mais nos fiordes, tornando hercúleaherculana a simples tarefa de sair para a rua. chegado à porta da sala de espetáculos, o menino órfão deparou-se com aquele que seria, para si, o mais triste. não que houvesse aqui qualquer desrespeito pela fatalidade do frade, apenas ocupavam sítios diversos

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Quadrante,2021

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