Quadrante 14

no seu coração: um era a liberdade e o outro a monotonia. nas portas (que queriam ser imponentes) da sala de espetáculos atravessavam-se duas correntes de ferro, unidas por três cadeados. ao lado, havia um sinal que indicava que o espaço estava agora inutilizado, desmontado, que já era só sala sem vida dentro. nos dias que se seguiram, o menino órfão teve de se deparar com o selar de dois caixões, um a lacre, outro a terra. retomou à sua vida, mas sem brilho, sem choques anafiláticos. deu a devida oração no funeral que o mereceu, ao outro deixou um envelope para o tempo corroer. no meio de uma dolorosa sensação, deixou-lhe uma curta mensagem: o amor pelo teatro é o amor mais egoísta que já houve memória: é amar abruptamente algo que não tem lugar para nós, que não nos quer, que quer muito sobreviver para continuar a ouvir o seu próprio nome declamado, mas não é passional. quer-nos meros espectadores, maravilhados com a sua beldade. se uma sala de espetáculos morre, o feixe de atenção será concentrado noutra, e assim sucessivamente até que o teatro consiga ganhar um aspeto central, uma elite moral e urbana a que devamos muitas vénias. porque sobreviveu, porque contra todas as expectativas prosseguiu sendo fiel a si próprio, nunca aos outros. o teatro, para não morrer, precisa que todos o amemmui - to, e não pode amar ninguém. o menino órfão ficou zangado com o teatro por se permitir ir embora, por não ficar para ser casa daqueles que não têm mais nenhuma. só que um dia o menino órfão crescerá, mudará de lar, de vila, de fiorde, e voltará a haver uma sala de espetáculos, talvez até maior, mais imponente, mais respeitada, e a comichão, que é a necessidade da arte, não cessará. o menino órfão, já feito homem órfão, irá perdoar o teatro, como se ele não soubesse o que faz, e o ciclo repete-se até à perpetuação.

talvez a única coisa mais incompreensível que amar a arte seja não a amar de todo.

Inês Antunes – Estudante de Direito (FDUL)

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Quadrante,2021