Quadrante 14

“Vós que entrais, abandonai toda a es - perança”, - fixa Dante Aligheri tais palavras na orla do portal da última morada das almas con- denadas. Sempre me perguntei qual a necessi - dade de as gravar em pedra, sendo que bastaria a Vergílio proferi-las para o mesmo efeito ser desencadeado. Suponho que tenha advindo da necessidade de assegurar que tal ensinamento não se tornasse mais difuso com o decorrer do tempo, e que tenha bebido inspiração das fa - migeradas tábuas de Moisés que encerram os dez mandamentos. No seu caso, e fazendo uso do poder subestimado da síntese, enclausura a sua mensagem de abandono à crença na pros - peridade emmeia dúzia de palavras (expectante que esta ecoasse no futuro com o mesmo vigor que possuía aquando da sua redação). Mal sabia Dante que a tão hegemónica Igreja que nortea - va toda a sua produção artística em pleno século XIII viria a padecer, nos séculos seguintes, da síndrome do descrédito; eventualmente, sur - gem correntes de pensamento de cunho liberal e positivista, a ciência é impulsionada, a huma- nidade empenha-se numa corrida vertiginosa de busca pela verdade, e eis que entra Darwin em cena: desenterram-se ossos de dinossau- ro, e percebem-se os mecanismos através dos quais são estabelecidas as relações causais que nos ligam a antepassados comuns, empurran- do o criacionismo para o baú do misticismo. No processo de perfurar a terra (que não mostra tendências de abrandamento), jamais se en- contraram as duas tábuas – em que lugar fica, portanto, a mensagem de Dante? Esquecida. Perdida. Afinal, os sete sé - culos decorridos desde a sua morte mostraram que mesmo omaterial mais firme está sujeito ao inexorável efeito de degradação que o passar do tempo tão bem proporciona. O abandono do câ - none da pequenez do homem conduziu-nos ao depósito de uma quantidade incompreensível de esperança no tempo vindouro, e ao pensamen -

to que o passado nada mais é que o registo dos nossos feitos enquanto seres menos sapientes e, por conseguinte, das nossas decisões menos informadas. Em última instância, optamos por descartar a felicidade decorrente da insignifi - cância de cada pequena ação tomada no tempo presente; as memórias que residem no tempo passado são desprovidas de importância, assim como a potencial panóplia de sentimentos que destas poderia advir. E porquê? Tudo em nome de uma verdade absoluta, que reside lá muito longe, nessa casa que se chama futuro, que nos foi dito que existia e da qual existemvislumbres, mas nunca um assoalhado onde pousar pé. Para ela caminhamos, finos, como papel, levados ao sabor do vento. Todo o peso é deixado para trás, e nada sobra que nos prenda à terra. Quando é que deixámos de ambicionar ver a pegada? O resultado nada mais é que a vivência constante de uma série de procedimentos for- mulaicos, repetitivos e desumanizantes que encerram a promessa de uma utopia alcançável, elevada a um estatuto quasi-divino, e a auto - -consciencialização de que os fins justificam os meios, exercício este repetido ad infinitum– até que nos é lembrada uma verdade que, durante todo exercício, fizemos por esquecer: o facto de que existimos, por acaso e contra todas as pro - babilidades, de uma forma temporária – além disso, ninguém vê Deus e sobrevive. A efemeri- dade de uma vida é passada a tentar perceber o que é preciso para fazer para alcançar X ou Y, ou a gritar que todo o significado da ação é encerra - do pela criação de um futuro melhor. Talvez seja altura de ser colocada a possibilidade de que tal não é verdade, e de que o futuro nada mais é que um vazio apático, desprovido de interesse para qualquer um. Este ensaio surge apenas como uma ten- tativa de ressuscitar a ideia de Dante, não ne - cessariamente levando ao extremo o abandono

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Quadrante,2021

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