Quadrante 14
os residentes da casa possam ler, a escrita terá sempre um carácter de presença do “eu” e da - quilo que o sujeito que escreve pretende trans - mitir. O mesmo princípio aplica-se ao jornalis- mo, mesmo com todas as transformações que tem vindo a sofrer ao longo das últimas décadas. 2. Como exercício criativo (mesmo numa lista de compras de supermercado), a escrita tor- nou-se, cada vez mais, nummeio essencial, seja para a organização da realidade que nos rodeia, como tambémpara a criação de entropia. Amas - sificação das redes sociais, onde a escrita man - tém uma presença imperativa é a demonstração exímia de como nessas plataformas reside exa - tamente aquilo que Didion nos transmite. Prova disso, é também o aproveitamento que os media fazem hoje dessas lógicas, onde o poder de in - fluência, que vemos desde logo nos títulos esco - lhidos, condiciona a nossa visão demundo. Mas é um jogo que aceitamos jogar de livre vontade? 3. Tendo em conta o caos informativo em que nos encontramos, onde parecem não existir segredos – e os que existem parecem-nos tão inacessíveis, quanto perigosos – a verdade é que a falta de regulação dificulta a nossa escolha so - bre aquilo que lemos. Mesmo procurando essa capacidade de filtragem pessoal, a nossa pre - sença nas redes é quase sempre exposta a con - teúdo que não procurámos, inclusive o de tipo noticioso. Fake news, websites de “notícias” de origem duvidosa e jornais que até respeitamos, mas que estão sempre a colocar a “pata na poça” contribuem para a nossa desconsideração face a uma profissão que mantém, no entanto, a sua total necessidade: ser jornalista. 4. Em The Age of Surveillance Capitalism , obra recentemente traduzida em português, Shoshana Zuboff argumenta que no caso das redes sociais, mais do que o produto, somos nós quem fornece a matéria-prima que alimenta as
receitas de grandes empresas como a Google e o Facebook. A norte-americana vai mais longe, realçando como estes “capitalistas de vigilân - cia” – onde inclui Larry Page (Google) ou Mark Zuckerberg (Facebook) – reclamam o direito a saber tudo sobre as nossas vidas, sem que haja qualquer tipo de controlo ou de regulamenta - ção sobre as suas próprias operações digitais em curso. Embora inescusavelmente vigiados, a autora insta-nos a que reclamemos o nosso di - reito de regulação (e de vigilância sobre quem nos vigia) e também de termos um futuro que seja escrito e decidido por nós, livre das mani - pulações subtis que nos conduzem a ações que vão ao encontro do interesse de quem puder pagar mais. Em termos genéricos, insta-nos a que fujamos da total alienação, em busca de in - formação fidedigna, colocando pressão sobre os próprios órgãos de comunicação social. 5. Neste ambiente complexo, bem espe - lhado por Zuboff, mas também por Mark Fisher, Jacques Rancière ou Anselm Jappe, osmedia são, simultaneamente, culpados e vítimas. Como jor - nalista sinto o peso da responsabilidade naquilo que escrevo. Sei que, independentemente do seu alcance, as minhas palavras podem influenciar, criar lógicas de pensamento e redefinir certas perspetivas. Por outro lado, estou também cien- te do quão reféns osmeios de comunicação social estão de binómios financeiros e burocráticos. Fisher entra de rompante neste aspeto: depois de décadas a analisar-se criticamente as falhas dos sistemas socialistas, também o capitalismo (na conceção fisheriana de “capitalismo tardio” ou “realismo capitalismo”) se tornou refém da burocracia. E mais uma vez, embora o online tenha contribuído para uma certa organização arquivística do mundo, também criou um com - plexo sistema de informação, que desde logo declarou morte aos jornais em papel, mas pa- rece, pelo menos até hoje, não conseguir ultra - passar certas lógicas experienciais. Mas adiante.
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Quadrante,2021
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