Quadrante 14
Emoções Morais e Confinamento em 2021: História de uma Agonia Antecipada
Há mais de vinte anos atrás, no verão de 1999, um grande Escritor Sul-Africano – por razões várias, então pouco conhecido na Europa –, John Maxwell Coetzee, escreveu um roman - ce que viria a abalar vários meios e fóruns de discussão, dentro e fora da academia e, a título remoto e ulterior, valer-lhe o Prémio Nobel da Literatura do ano 2003. O romance chamava-se Disgrace e lidava, de forma inusitada, com um drama nacional muito pouco conveniente para um público liberal e humanista, que ainda ve - nerava (e veneraria) a figura de Nelson Man - dela como um mito do século XX: uma espécie de linchamento étnico do antigo grupo (ou cor) social privilegiado. Disgrace é um livro sobre a África do Sul do imediato pós-Apartheid, certamente, e há nele muitas referências, até de teor geográfico, cuja pertinência ultrapassa o leitor leigo – omesmo é dizer, insuficientemente viajado. Algumas sub - tilezas de uma prosa nua, alusiva e, muito per- tinentemente apelidada por alguns críticos li- terários de renome como ‘sinóptica’, são pouco acessíveis, não só a quem não conheça a África do Sul (um país com uma superfície de quase 1 300 000 km², 11 línguas oficiais e um dos índices de criminalidade mais elevados do mundo), mas
mesmo a quemnão conheça a Cidade do Cabo e a zona do Cabo Oriental. (A este propósito, alguns comentadores alegariam, com pertinência, que tal dimensão de exclusividade, a ter cabimento, excluiria da mera compreensão textual um pú - blico que se autoproclama especialista na obra de John Coetzee…). Mas Disgrace é bem mais do que um livro sobre a África do Sul ou sobre um país recente- mente emancipado de um jugo racista mundial- mente proclamado e condenado – excluem-se disto, como é bem sabido, algumas figuras polí - ticas cimeiras das últimas décadas do século XX, incluindo um ex-Chefe de Estado Português. E isto porque há, ao longo de toda a história nar - rada, e bem alojados nos seus mais recônditos momentos descritivos, indícios estremecedores de uma mudança de paradigma de comunica - ção – política, interpessoal, intercultural, mes - mo auto-referente – que levariam alguns anos a consolidar-se a uma escala global e infiltrar a democracia e a vida comum, como a vida íntima, dos seus cidadãos. Em alguns momentos-cha - ve da história, e sempre com o famigerado tom de ‘sussurro’ ou desabafo pessoal, feito através da voz indirecta do narrador, Coetzee atribui a David Lurie (o protagonista da história) incom -
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Quadrante,2021
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