Quadrante 14
preensões sobre os novos veículos de comuni - cação da geração com a qual já não é capaz de comunicar (é a geração dos seus alunos, da sua filha e dos amigos da sua filha e é também a mi - nha geração). Uma dessas notas de incompreen - são, que poderia servir como um aviso a um lei - tor meticuloso do romance diz o seguinte: ‘He buys a small television set to repla - ce the one that was stolen. In the evenings, after supper, he and Lucy sit side by side on the sofa watching the news and then, if they can bear it, the entertainment.’ (Coetzee, 1999: 141) Esta passagem textual é bastante inócua – como, de resto, o são todos os excertos des - ta história perturbadora e violenta, quando de - vidamente isolados. Foi muitas vezes dito pela crítica, literária e jornalística, deste romance polémico que, muitomais do que fazer umdiag - nóstico político e social local, o que John Coetzee estava apenas a esboçar era um oráculo do alvor do novo milénio – em que a própria especifici - dade dos problemas sociais sul-africanos seria demasiado circunscrita para ter protagonismo e visibilidade num cenário político global calami- toso, ao mesmo tempo que os seus mais cruéis detalhes se normalizariam nummundo sem di- mensões locais ou zonas de influência geoestra - tégica conhecidas. E hoje, mais do que vinte anos volvidos sobre a publicação de Desgraça , aquilo a que as - sistimos é a massificação despudorada, agres - siva e ininterrupta, numa comunicação social amorfa e omnívora, do fenómeno de indiscrição generalizada pressentido por Lurie e pelo narra- dor da sua história pessoal. Muitos leitores con - siderarão arbitrário ligar a publicação de um ro - mance escrito por um autor oriundo de um país periférico e muito problemático com a massifi - cação dos social media e do negócio do showbiz televisivo, que transformaria veículos tradicio -
nais de comunicação em receptores de espetá - culos de desinformação e acosso da vida priva - da. Terão, em boa maneira, razão – sobretudo pelo desconhecimento do impacto académico e não académico do último romance Sul-Africano de J.M. Coetzee no mundo cultural anglófono, bem como de alguns dos custos da sua publica- ção para o autor (Coetzee, após críticas de ra - cismo proferidas pelo partido de Nelson Man- dela e Thabu Mbeki, o ANC, sairia da África do Sul e prosseguiria a sua vida e a sua carreira na Austrália). É que o problema em análise foi apenas sinalizado pelo autor de Disgrace , estando bem longe de se circunscrever a qualquer das suas hipostasiáveis mensagens, enquanto história. A forma como a comunicação social – como quase cada sector da esfera pública e priva - da nas sobrecarregadas democracias ociden- tais – evoluiu ao longo dos últimos vinte anos, tornou a coscuvilhice mediática numa forma de vida simples, barata e rentável (visual como financeiramente). Ora, não restam hoje dúvi - das de que as emoções são importantes facto - res no processo decisional dos indivíduos e das organizações – incluindo as emoções mais vis e de difícil pilotagem em termos expressivos e comportamentais. Não há decisões ‘puras’, que resultem de uma estrita ponderação equânime entre alternativas igualmente razoáveis – e a crença no oposto, em termos públicos como privados, muitas vezes resulta apenas de omis- sões perigosas do impacto de factores emocio - nais no processo de escolha. Mas o problema com emoções descoor - denadas ou mal pilotadas, ou insuficientemen - te compreendidas – justamente aquilo que fez os filósofos temerem-nas como ameaças, até as conseguirem reinterpretar como inarraigá- veis peças da engrenagem humana – é que po - dem dar aso a uma espécie de opacidade voli-
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Quadrante,2021
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