Quadrante 14
seu poder a determinação do que é bom e de - sejável para si mesmo; para evitar a morte, o homem tudo pode e deve fazer. O homem, na sua condição natural, é uma totalidade em si mesmo: como foi dito por Oakeshott, o homem hobbesiano é um ens completum. Ele decide so- bre a sua própria existência. Tudo isto pode pa - recer banal: afinal, o subjectivismo da existên - cia individual é tido hoje como auto-evidente. Mas Hobbes libertou a existência do homem de quaisquer concepções teleológicas: a liberdade do homem deixava de estar na sua participação quer na vontade de Deus, quer na procura da virtude. É o homem natural que decide sobre o bom e o mau, o desejável e o indesejável, o que pode ou não fazer – tudo dependerá, na prática, do seu poder. Ora, o Estado existe neste esquema como necessário precisamente pelo individualismo de Hobbes: o homem, enquanto totalidade moral, encontra-se perante outros homens; o conflito generaliza-se. O Estado é criado pela necessida- de de monopolizar aquela existência moral no seu seio – só assim é que a coexistência pacífi - ca é possível. A indivisibilidade da soberania do Estado coloca-se em paralelo com a “omnipo - tência” do homem no estado de natureza. Mas, da mesma forma que a existência do homem se encontra desligada de qualquer concepção te - leológica, também a existência do Estado está despida de qualquer teleologia. O Estado, como “pessoa artificial”, tem um único objectivo: ga - rantir a paz. Não pretende promover nem pro - curar a virtude, ou o “maior dos bens” como Aristóteles e a sua Cidade; ele não distingue entre regimes piores e melhores. O Estado, en- quanto depositário da soberania, apenas visa a pacificação da sociedade. Neste sentido, Hobbes inaugurou a ideia do Estado moderno – do “Es - tado-polícia” e, posteriormente, do Estado - -neutro. Mas mais: é impressionante verificar como, mesmo ignorando o argumento de base
teológica de Hobbes (que ocupa metade do Le - viathan), o esquema permanece inteiro. O indi - víduo e o Estado hobbesiano mantêm-se de pé sem recurso a teleologias ou teologias. Indivíduo e Estado: estas são as duas grandes categorias do pensamento hobbesiano que ficariam para a História. O primeiro, o in - divíduo despido de quaisquer lealdades prévias, tanto à Cidade como a Deus; o segundo, o Esta - do como artifício da vontade, como máquina e obra primeira do advento do mundo da técnica. E estas duas categorias colocam-nos perante a relação política essencial do mundo moderno: indivíduo vis-à-vis o Estado. Esta dicotomia, tão hobbesiana, haveria de caracterizar a evo - lução do liberalismo até aos dias de hoje. E todos os projectos pós-políticos do mundo moderno, como o comunismo, visaram o desaparecimen- to deste aparelho hobbesiano que é o Estado, um mundo sem sujeição nem obediência – um mundo sem relações de poder. Hoje, perante a excepção que foi a evo - lução da pandemia, regressou o debate sobre o problema da ordem e da desordem. Estará a desordem sempre por debaixo da superfície da civilização, de forma que ao mínimo descuido aquela bate-nos à porta sem pedir autorização? Foi precisamente para responder a esta questão que Hobbes desenvolveu o Leviathan, que, como máquina e “Deus mortal”, é ainda um “mito” - um aviso de que a desordem está sempre pre - sente, e que tudo depende da nossa vontade em manter de pé os alicerces da civilização.
Francisco Carmo Garcia – Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais (IEP- Universidade Católica de Lisboa)
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Quadrante,2021
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