Quadrante 14

Esta antropologia hobbesiana mostra-se incompatível com a visão aristotélica do ho - mem até na sua dimensão e implicações teleo - lógicas. Lembremo-nos de que, em Aristóteles, a felicidade (eudaimonia) se configurava como um estado de repouso, como um summum bo- num: a felicidade encontrava-se alcançando aquele estado de repouso perpétuo, e nem to - dos os homens eram capazes de o alcançar. Em Hobbes não há qualquer estado de repouso nem nenhum “bem supremo.” A sua visão mecani - cista do homem trata-o como uma criatura dos desejos: ele é naturalmente atraído para o seu desejo imediato e afastado de aquilo por que sente aversão; a vida do homem é uma perpétua perseguição dos seus desejos imediatos. A feli - cidade do homem não é a eudaimonia aristo - télica – a felicidade é apenas o “contínuo pro - gresso do desejo.” Podemos imaginar em que estado é que este homem, em contínuo movimento em tor- no do seu desejo imediato, se encontra na sua condição natural (no conhecido “estado de na - tureza”) – sendo a natureza caracterizada pela escassez, a procura da felicidade entre os ho- mens vai ser uma inexorável fonte de conflito. A vida na natureza era “solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta.” Para o leitor pode parecer uma visão excessivamente mecanicista da na - tureza do homem: este surge como quanta de poder em colisão constante com os seus pares. Mas o mecanicismo de Hobbes vai encontrar- -se lado-a-lado com uma visão moral da vida do homem – afinal, ainda que operando uma grande transformação, Hobbes partilhava ain - da dos objectivos da filosofia política. Se a vida é toda ela movimento à procura da felicidade, en- tão a morte, que significa o fim do movimento – e por isso da felicidade -, só pode ser o maior dos males. Não há summum bonum, mas existe summum malum. Todo o homem quer evitar a morte, e da morte decorre a moralidade hobbe-

siana: porque a morte é evidentemente o maior dos males, então o homem é um depositário de um direito natural à sua preservação, i.e. tem o direito de garantir a sua sobrevivência perante a possibilidade da morte. A principal novidade de Hobbes – por - que está nos alicerces do seu esquema – vai ser esta: a moralidade deriva do maior dos males, da morte. E daquele direito natural à auto-pre - servação vão surgir as leis naturais que permi - tem ao homem alcançar a paz e edificar o po - der soberano. Esta transformação operada por Hobbes teve implicações abismais: as leis natu - rais (ou seja, a moral, o certo e o errado, o bom e o mau) decorrem de um direito natural para evitar a morte. Deste esquema vai surgir o Estado. Como o homem não é um animal político, a comuni - dade política tem de ser algo extrínseco ao ho - mem: ela tem de surgir como obra da vontade dos homens, como um artifício. Por isso é que o Estado surge em Hobbes através do contrac- to originário, que se materializa pela vontade de cada um em renunciar ao usufruto do seu direito natural. Se o direito natural de cada um implicava que o homem particular era “senhor de si” porque determinava as condições da sua preservação, então o Estado positivamente edi - ficado, perante a renúncia daquele homem ao seu direito, vai monopolizar o poder de garantir a paz – e a paz mais não é do que preservação de todos e a coexistência entre todos os homens. Hobbes eternizou-se no imaginário oci- dental como o apologista do absolutismo e da indivisibilidade da soberania. Contudo, o que não se percebe frequentemente é que este ab - solutismo de Hobbes existe por obra do seu in - dividualismo. Hobbes é tão absolutista quanto individualista: o homem natural, depositário de um direito natural à sua preservação, tem em

64

Quadrante,2021

Made with FlippingBook Digital Publishing Software