Quadrante 14

Como que oportunamente, em abril de 2021 cumprem-se os 370 anos da publicação do polémico magnum opus do controverso filóso - fo inglês, o Leviathan. Poucos serão aqueles que passam incólumes a qualquer menção da obra: o Leviathan é daqueles livros que nos dizem sem - pre alguma coisa – nem que seja, como eviden - cia o nosso subconsciente, uma certa aversão. Mas para quem lê o Leviathan, percebe-se que se está perante uma obra excepcional – um livro que fala da realidade sempre presente, de pro - blemas imutáveis à condição humana. Escrito no século XVII, reflecte o seu tempo: os conflitos, as ideias, as idiossincrasias da sua conjuntura e circunstância. Atendendo à sua circunstância, o Leviathan foi, como disse um grande estudioso de Hobbes, uma “vitória dialéctica” – Hobbes era um homem que, como todos os homens, es - teve comprometido, tomou partido, fez inimi- gos, combateu e lutou, e por isso foi postuma- mente vilipendiado de forma quase generalizada pelos seus contemporâneos, com os epítetos ti- picamente injustos usados por quem está preso no seu tempo. Mas o Leviathan é uma obra in- contornável precisamente porque ultrapassa o seu tempo: o seu argumento e as suas implica- ções não se podem reduzir à sua conjuntura, sob pena de não compreendermos o lugar de Hobbes como filósofo político e moral da modernidade. Passados 370 anos, o que podemos dizer hoje do grande filósofo de Malmesbury? Em primeiro lugar, é necessário com- preender o mundo de Hobbes. O seu tempo era também um tempo de crise: a Europa estava mergulhada em guerras religiosas e a Inglater - ra de Hobbes descarrilara numa guerra civil que levou o filósofo a exilar-se prolongadamente em Paris. Se, por um lado, o conflito religio - so decorria das várias leituras subjectivas das Escrituras, o conflito civil, por outro, decorria das “doutrinas absurdas” que os pensadores do tempo desenvolviam, sob influência das ideias

“subversivas” legadas pelos antigos filósofos gregos e romanos. Os adversários de Hobbes são especialmente dois: os “papistas”, que desafia - vam o poder do monarca inglês, Carlos I, com recurso às Escrituras, e os republicanos, que de - safiavam o poder do rei com recurso a uma ideia de liberdade cívica herdada do mundo clássico. A acção de ambos contribuía para minar o po - der soberano, corroendo-o até ao ponto em que a sociedade descarrilava na guerra civil. É sob este pano de fundo que Hobbes desenvolve a sua “filosofia civil”, tanto contra as interpretações subjectivas da Bíblia como contra as ideias sub- versivas sobre a sociedade. Mas a originalidade de Hobbes nesta resposta está na diferença que ela reflecte quando comparada com outros co - nhecidos monarquistas: a defesa hobbesiana da monarquia absoluta não se vai fazer, como fez por exemplo Robert Filmer, através do pres - suposto do direito divino dos reis. Hobbes vai prescindir das armas tradicionais e vai inaugu- rar uma “nova filosofia política.” Esta nova filosofia política vai-se apre - sentar contraumpressuposto tidopor certodes- de Aristóteles a São Tomás, até aos contempo - râneos de Hobbes (como Filmer): o pressuposto de que o homem é um animal político. Por toda a obra política de Hobbes correm laivos contra o “aristotelismo”: para o inglês, a filosofia moral e política estava, no século XVII, no mesmo es - tado em que fora deixada por Aristóteles. E este fracasso da tradição em descobrir o certo e o errado derivava daquele falso pressuposto. “Os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros”, diz Hobbes, logo afirmando a seguir que entre os homens a discórdia é a coisa mais natural. O homem não tende naturalmen - te para a vida em comum; pelo contrário, o ho - mem segundo Hobbes é um “animal dinâmico” – isto é, é um ser problemático, perigoso.

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Quadrante,2021

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