Quadrante 14

do os seus algozes determinados em mantê-lo cativo até que a praça de Ceuta fosse rendida. To - davia, ninguém estava disposto a entregar Ceu - ta, ou quase ninguém – nem mesmo D. Duarte. Imperava tentar outras formas de resgatar D. Fernando. Esta situação torturou-o de dúvidas, não por ser fraco, mas por ser inteligente, lúci - do e reflectido. Jamais as suas dúvidas ou a sua hesitação podem ser confundidas com debilida - de ou fraqueza de espírito. Mês e meio antes de fazer quarenta e sete anos, em Tomar, foi asso - lado pela peste que desgraçava o Reino e passa - dos doze dias de enfermidade entregou a alma ao Criador. Sucedeu-lhe o seu filho Afonso, o quin - to do nome, o mais velho dos seus nove filhos, dos quais três haviam morrido logo na primeira infância. Deixou no testamento que ditou à hora da morte, atormentado por sentimento de culpa, que se deveria entregar a praça de Ceuta, se esta fosse o único recurso para que o seu irmão pu - desse retornar comvida à Pátria. Deixou também no mesmo testamento que quem deveria assu - mir a regência durante a menoridade de D. Afon- so era a sua esposa D. Leonor. Nenhuma destas vontades foi cumprida. Nos anos que se seguiram à sua morte não faltaram intrigas de corte, dis - putas e tensões entre poderosos, que acabariam por culminar na Batalha de Alfarrobeira, na qual os seus irmãos se digladiaram acabando um de - les, o Infante D. Pedro, morto no campo de ba - talha. Político eloquente, como o seu cognome indica, é um Rei esquecido e tristemente mal lembrado. Soube ultrapassar as dificuldades que a vida lhe apresentou e continuar a obra iniciada pelo Pai, promovendo galhardamente a memó - ria da fundação da Dinastia de Avis. E é também sobre a tutela de D. Duarte que a cronística ré - gia toma um impulso decisivo de onde resultam obras com as crónicas de Fernão Lopes. Se D. Duarte é o Rei bibliófilo – como o será também o último dos seus sucessores co- roados – e o Rei das admiráveis obras onde

ficou gravada a mais alta revelação da espiri - tualidade avisina, cumpre-nos fazer menção dos escritos que provam a sua inteligência e o seu talento. A mais célebre é o Leal Conselheiro . Uma obra escrita para uma circulação restrita, de corte, onde o Rei a pedido de sua mulher a Rainha, coligiu um conjunto de pensamentos que achava importantes para aplicar à gestão do quotidiano. Mistura filosofia com espiritua - lidade, experiência de vida, notas e recordações pessoais, formando um verdadeiro prontuário político e humano. Longe de ser um tratado, por não haver uma trave mestra que guie uma ideia, é sim, uma compilação sumária de vários assuntos bem organizada. Composta por um prólogo e cento e três capítulos, distinguem-se três partes: a primeira até ao capítulo setenta e dois, dedicada ao estudo os vícios, dos pecados e das virtudes; uma segunda, do capítulo setenta e três ao noventa, versa sobre o contentamento, a tristeza e as «cinco casas» em que se divide o coração; e a terceira, que engloba os restantes capítulos, é um apenso em que D. Duarte junta apontamentos variados que quis incluir, trans - critos sem especial sequência. A redacção da obra ocorreu pouco antes da sua morte, entre 1437 e 1438. Segundo Óscar Lopes e António José Saraiva, não era fácil nestas primeiras décadas do século XV escrever em português uma obra como o Leal Conselheiro . Para expor ideias abs - tractas e sentimentos, usava-se o Latim, uma vez que ao tempo o Português, enquanto lín - gua vulgar, era apenas servia a narrativa. Com o escopo de apresentar ensaios morais, polí- ticos, religiosos, foi necessário criar palavras portuguesas que traduzissem conceitos latinos consagrados da escolástica e proceder a toda uma inovação do discurso, agilizando a sintaxe para encadear proposições lógicas e introduzir uma pontuação que se adequasse a este tipo de prosa. Por estes motivos, apontou o biógrafo de D. Duarte: «o que lhe faltou, eventualmen - te, em fluidez e elegância de escrita, sobrou-lhe

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Quadrante,2021

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