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em visão política, em capacidade de articular o passado e o futuro ao serviço de uma ideia de reino.» Não foi uma obra destinada à leitura em voz alta, como muitas do seu tempo, mas sim à leitura individual de gabinete, o que revela mais uma vez o objectivo moral do livro, de uma lei- tura que deveria persuadir, comover e edificar. O título é colocado à consideração da Rainha, a quem a obra é dedicada: «Podê-lo-eis, se vos praz, chamar leal conselheiro» – e acrescenta: «E filhai-o [tomai-o] por um ABC da lealdade, porque é feito principalmente para senhores e gente de suas casas» – expressando assim que os conselhos serão bons e dados por quem os deve dar a quem os deve receber. Deixou-nos assim El-Rei um troféu espiritual para quem se quiser apaixonar pelo alcance de tais textos, glória da ars scribendi do seu tempo. Se o Leal Conselheiro é a obra mais com- pleta de D. Duarte, não desmerece a nossa aten - ção ex aequo a restante bibliografia eduardina. Se já se falou que o Leal Conselheiro foi escrito apenas para um círculo restrito, o monarca quis compor, para além desta, outra obra absoluta- mente inovadora que pensava poder vir a atin - gir maior divulgação, mas a sua morte inespe - rada não a permitiu terminar. Porém, um frade, ou alguém que conseguiu obter o manuscrito, copiou-o e finalizou-o com o tradicional «Deo Gracias», como se a obra estivesse acabada. Não sendo, ao que se sabe,mais copiada, andou como perdida até ao século XIX, restando dela apenas uma vaga memória. Considerando-a mesmo perdida, Barbosa Machado no século XVIII, na sua Biblioteca Lusitana , referiu que o Rei teria escrito um livro sobre «domar cavalos», que desconhecia. Tratava-se, portanto, do Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela . Dese- nhado para ser composto por dezasseis partes, ficou apenas com sete redigidas. Não obstante ser uma obra inacabada, é muito mais que um tratado puramente técnico, pois há nitidamen-

te uma promoção de capacidades tanto físicas como emocionais. Desenvolve temas como a vontade humana para cavalgar, o poder do cor- po, os requisitos materiais para a aprendizagem da arte equestre, princípios elementares da téc - nica de montar, formas como saber lidar com o medo, a segurança no cavalo, a elegância ou os preceitos do torneio. Estamos diante do «nosso primeiro tratado completo, perfeito, científico, de pedagogia desportiva», escreveu Joseph Peil, responsável por uma excelente edição da obra. Mais, Rodrigues Lapa acrescentou ser este um tratado de equitação escrito por um psicólogo. O zelo da sua actividade física e a paixão pelos cavalos, a sua fervorosa vida religiosa – própria de alguém conhecedor do seu foro psíquico pela ultrapassagem de uma depressão –, foram os condimentos para escrever este livro apaixona - do, logo quando ainda infante, ciente da busca por uma mens sana in corpore sano. Escarneceu com refinado talante os fidalgos que se arras - tavam obesos e inúteis, preocupados com jo- gos e intrigas palacianas, com o vestir e com o calçar, quando deveriam cavalgar, caçar javalis pelos montados, exercitar o físico e respirar ar puro. Lembra o seu saudoso Pai, apresentando- -o como paradigma, que com setenta anos ain - da subia para a sela do cavalo sem qualquer tipo de ajuda, exercício que ao tempo muito homem de cinquenta anos já não era capaz de cometer. Peça da nossa literatura, joia da cultura medie - val europeia, seja o pioneiro Livro da Ensinança de bem Cavalgar Toda a Sela exemplo da essência dos homens que fizeram Portugal. Completando a tríade está aquele que foi o seu livro de bolso. Mais conhecido como Livro da Cartuxa , por ter sido na Cartuxa de Évora que permaneceu a única cópia do original, é tam - bém chamado Livro dos Conselhos de El-Rei Dom Duarte. Trata-se de um livro de apontamentos, um livro que o Rei levava para todo o lado, que servia de agenda ou para anotações importan -

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Quadrante,2021

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