Quadrante 14

tes. Claramente produto de alguém muito liga - do à escrita de forma física, racional e afectiva. Pelo seu conteúdo Oliveira Marques afirmou que «quase se poderia refazer a nossa visão da época utilizando como fonte exclusiva o Livro da Cartuxa ». É composto por noventa e sete ru - bricas: sobre conselhos que deu e que recebeu, preceitos governativos, um horário que o pró - prio estabeleceu para si mesmo, reflexões sobre os evangelhos, um inventário da sua biblioteca, correspondência com o Rei de Castela, com a sua irmã Isabel da Borgonha, correspondência que expediu, normas sobre o funcionamento da capela real, anotações sobre astrologia, recei - tas de culinária, mezinhas, entre outras coisas. Indispensável, por conseguinte, para a história das mentalidades do Portugal da Idade Média tardia, é indispensável também para a constru- ção do retrato psicológico do nosso Autor. D. Duarte simboliza um paradigma de erudição e de entrega ao bem comum: rex et magister – digamos com propriedade. O que a sua pena riscou traça o perfil da sua própria existência: a de um homem completo, exemplo do triunfo da vida interior e intelectual sobre a material e mundana, de uma curiosidade sem raias, ávido de servir e amar. Da compleição de Rei e escritor traduz-se, pois, o significado da aura preambular da segunada dinastia, da es-

piritualidade de quem cuja instrução forjou os desígnios da Pátria, mens agitans molem . Fique - mos com os versos certeiros, profundos e su- blimes com que Pessoa o eternizou, esculpidos como se o próprio Rei os proferisse:

«Meu dever fez-me, como Deus ao Mundo. A regra de ser Rei almoumeu ser, Emdia e letra escrupuloso e fundo.

Firme emminha tristeza, tal vivi. Cumpri contra o Destino o meu dever. Inutilmente? Não, porque o cumpri.»

Tomás Pinto Bravo Mestrando emHistória da Igreja na Pontifícia Universidade Gregoriana emRoma

Nota: Não se assumindo o presente texto de índole científi - ca, endereçamos, todavia, o leitor curioso para a bibliografia clássica e elementar, v.g.: Luís Miguel Duarte, D. Duarte: Re- quiem por um Rei Triste, Mem Martins, Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portu- guesa, 2005; Leal Conselheiro, edição crítica de Maria Helena Lopes de Castro e prefácio de Afonso Botelho, Lisboa, INCM, 1999; Livro da Ensinaça de Bem Cavalgar toda a Sela que fez El-Rey Dom Eduarte de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta, edição crítica de Joseph M. Piel, Lisboa, INCM, 1986; Livro dos Conselhos de El-Rei Dom Duarte: Livro da Car - tuxa, Edição diplomática, transcrição de João José Alves Dias e introdução e revisão de A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Estampa, 1982 . Dom Duarte, introdução e selecção de textos por Afonso Botelho, Lisboa, Verbo, 1991 .

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