Quadrante 14

ou em palavras, é paralisante. As pessoas que são vítimas de ódio e intolerância anulam-se e cresce o opressor. A maioria não age, não con - dena, não confronta, não rejeita essa intole - rância, porque não é dirigida a si diretamente: normaliza-se o ódio. A inação da sociedade cria uma desconfiança do “eu” em relação a todos e a anulação aumenta. Quando muito, a vítima mantém relações sociais que envolvem pessoas que também são, de alguma forma, oprimidas. Esta segregação é exatamente aquilo que o in - tolerante deseja, já que se cria uma marginali - zação que torna mais fácil que as vítimas da in - tolerância sejam apelidadas de “marginais”. Muitos destes fenómenos que dão ori - gem à expressão de pensamentos intolerantes, como o machismo, o racismo, a xenofobia, a homofobia, a discriminação religiosa e muitos outros, estão tão profundamente enraizados na nossa sociedade que alguém que negue tê-los dentro de si apenas demonstra não ter percor - rido ainda o caminho de tomada de consciên- cia dos seus preconceitos de modo a se libertar deles, paulatinamente, ao longo da sua vida. A grande maioria das pessoas prefere negá-los e, desse modo perpetuá-los, sendo intolerante ou, pelo menos, tornar-se uma parte ainda maior do problema, ao fazer parte de uma maioria que tem estes preconceitos e não os expressa para não ser intolerante, mas também não é intole - rante com quem o é, pois sempre ouviu expres - sões dessas realidades psicológicas e, num pro - cesso de socialização, se conforma com elas. É necessária uma mudança de mentali - dades, que passa por um processo de conscien - cialização da nossa própria forma de estar em sociedade, de debate, com vista à desconstrução destes fenómenos, que passa por confrontar fa - miliares, amigos, conhecidos e desconhecidos, e também de denúncia dos atos de intolerância. Segundo a tradição filosófica mais antiga, os

melhores argumentos prevalecerão e, aos pou - cos, se perceberá que a intolerância para com a intolerância é a única solução para o problema. Mas, paralelamente a essa tomada de consciência e ação social que tem de existir, as instituições democráticas têm de acordar e co - meçar a defender-se, até porque, se a sociedade deve agir no âmbito de deveres morais e cívicos que a deontologia e a filosofia política demons - tram que recaem sobre a mesma, enquanto tal, e também os indivíduos, só as instituições de - mocráticas têm o poder de conformar o Direito à defesa da tolerância e, como tal da prossecu- ção de um ideário de intolerância para com os intolerantes. A ordem moral e a ordem de tra- to social têm de atuar, mas a ordem normativa também. Senão, caímos no absurdo de serem as redes sociais, no exercício dos poderes de soberania que têm sobre os seus utilizadores a partir do momento em que concordam com os seus termos de utilização, as únicas a defender a tolerância e a verdade, ao eliminar publicações e bloquear contas intolerantes e ameaçadoras para a democracia, porque os Estados não lutam eficazmente contra a intolerância nas ruas, nas próprias instituições democráticas, na comuni - cação social, no entretenimento e em todas as estruturas que compõem as sociedades. Como defende John Rawls, é necessário o “direito de não tolerar os intolerantes em pelo menos uma circunstância, isto é, quando sinceramente e com razão acreditam que a intolerância é ne - cessária para a sua própria segurança”. Bernardo Sá – Jurista

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Quadrante,2021

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