Quadrante 14
são, não raras vezes, provocados na vítima pela expressão, verbal ou comportamental, de um terceiro, mas nunca pelo seu mero pensamento, pelo que a expressão, enquanto exteriorização do pensamento, é que deve ser limitada, nun - ca o pensamento. A liberdade de expressão, em democracia, só pode ser restringida em virtude de conflitos comdireitos também eles nucleares da dignidade humana, como os que decorrem da ideia de tolerância. É a partir da ponderação relativa à conjugação dessas realidades confli - tuantes que se coloca um limite à própria liber - dade de expressão, através da prática de um ato ou de uma conduta no momento em que ocor - re a manifestação, ou posteriormente. Questão diferente é a que se prende com ações sobre o pensamento, nomeadamente através da educa- ção e da autoanálise. É a expressão individual, enquanto ma - nifestação da nossa consciência, que permi - te a um ser humano ser aquilo que é em toda a medida, traduzir o seu pensamento num modo próprio de estar em sociedade, de agir, de falar, de se expressar, ao invés de uma dissonância que, aos poucos, destrói o “eu”, ao esvaziar de sentido qualquer sentimento diferente, qual - quer opinião divergente, já que não pode ser divulgada, restando apenas a escolha entre a sua diluição na homogenia da sociedade e a sua eliminação. Junto com a supressão de outras di - mensões do indivíduo livre, como a liberdade de consciência, religião ou culto, ou a de aprender e ensinar livremente, a individualidade dissol- ve-se no coletivo, numa situação tão própria dos regimes tirânicos. Talvez pelos traumas provocados por es- sas experiências, a liberdade de expressão é tida num patamar tão elevado que se chega a consi - derar que deve ser ilimitada, como fundamento da própria democracia. Mas, tal como na psica - nálise, é necessário analisar os traumas da his-
tória do mundo, à semelhança de uma pessoa com uma infância traumática, para que os mes - mos não resultem na criação de padrões que se consubstanciem numa recriação cíclica do pas - sado que se tenta, aliás, evitar, situação essa em que, como se continua a verificar, as sociedades caem, repetidamente, em regimes tirânicos e a liberdade de expressão, que se defende a todo o custo, dá origemà sua total supressão. Os líderes populistas encarregam-se de dar voz à intole- rância e ao ódio, apoiados numa total liberda - de de expressão para, quando chegam ao poder, controlarem todos os meios que possam levar à manutenção, ou à queda do poder, numa lógica maquiavélica, e a liberdade de expressão passa de quase total a quase nenhuma. A necessidade de legítima defesa da sociedade e da própria de - mocracia perante ameaças é um aspeto pacífico na filosofia política. Nas palavras de Karl Po - pper, "(…) tolerância ilimitada leva ao desapa- recimento da tolerância. Se estendermos tole- rância ilimitada até mesmo para aqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante contra a inves- tida dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, e a tolerância junto destes." Mas, na realidade, as sociedades continuam, no âmbito do respeito pela liberdade de expressão, a per - mitir que se dissemine a intolerância e o ódio, que minam a sociedade e a própria democracia. Para além do perigo da intolerância para as instituições democráticas, a necessidade de limitar a liberdade de expressão em nome da tolerância, decorre da circunstância de poucos fenómenos serem mais danosos para o ser hu - mano do que o ódio de que é alvo por parte de outros pela sua identidade, ódio esse que, não raras vezes, é interiorizado pela vítima, que passa a nutri-lo em relação a si mesma, em adição àquele que é dirigido ao opressor, ou em substituição do mesmo. O medo que resulta da expressão de ódio e intolerância, seja em atos
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Quadrante,2021
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