Quadrante 14

riores da sua atmosfera, dois bilionários deci- diram aventurar-se, cada um em seu foguetão, em curtas missões de turismo espacial. No dia 11 de julho, Richard Branson esteve cerca de quinze minutos a bordo da VSS Unity, tempo suficiente para experimentar condições de gravidade re - sidual e regressar à Terra. Poucos dias depois, a 20 do mesmo mês, foi a vez de Jeffrey Bezos embarcar numa viagem semelhante, de apro- ximadamente dez minutos - porventura ainda mais curta que os intervalos que concede a mui - tos dos seus trabalhadores - sem qualquer mo - tivação científica, mas conduzida apenas para diversão própria. Paira, desde modo, a sensação de que possamos estar a assistir à subversão do desenvolvimento científico a favor de caprichos individualistas que nada têm a acrescentar ao edifício de conhecimento que foi sendo cons - truído ao longo dos últimos séculos e, de for- ma mais evidente, ao longo das últimas déca- das. Estas expedições, por maior que seja a sua projeção mediática, não serão mais do que um conjunto de momentos que se esvaziamna mais vaidosa autopromoção, perante um planeta em suplício que assiste impávido ao esbanjamento de recursos sem quaisquer retornos que intro - duzam benefícios coletivos, ao mesmo tempo que se infligem tremendos danos ambientais. Enquanto milhões de cientistas se debatem com obstáculos das mais variadas naturezas à prossecução dos seus trabalhos de investiga - ção, um grupo de pessoas que gozam de uma situação económica privilegiada, exclusiva - mente para seu gáudio e aproveitando perver- samente conquistas científicas e tecnológicas consolidadas com tremendo custo, dão-se ao luxo de desembolsar milhões que poderiam ser colocados ao serviço da melhoria das condições de vida na Terra, desde logo de quem para elas trabalha. Em defesa destes empreendimentos de ampliação de egos, perfilam-se argumentos que apontam para a democratização do acesso ao Espaço. Todavia, deveria preocupar-nos que

seja um conjunto de indivíduos a quem o pro - gresso científico pouco ou nada diz a marcar a agenda mediática no que diz respeito à explo - ração espacial, sobretudo numa altura em que esta poderia possibilitar um auxílio à resolução de alguns problemas sentidos no nosso plane- ta, por exemplo, pela hipotética exploração de energia solar no Espaço, pela exploração mine - ral de outros corpos celestes - poupando a Ter- ra aos efeitos nefastos das indústrias extrativas - ou pelo estudo das possibilidades de sobrevi- vência dos diversos organismos em condições adversas. No limite, e polvilhando a narrativa com uma amarga ponta de ironia, estes episó - dios parecem ser a antítese perfeita da trágica história de Major Tom, cantada por David Bowie na sua célebre Space Oddity. Se, por seu turno, este fica condenado a navegar à deriva enfren - tando o vazio após perder o contacto com a Terra que mergulhava em apoteose no anos 60 assoberbados pela metamorfose científica em curso, os badalados astronautas de ocasião dos nossos dias levam consigo o êxtase do alcance dos seus mais excêntricos sonhos, observando do alto ummundo em perdição. A exploração espacial como instrumento apa - ziguador da curiosidade científica e como ala - vanca para o progresso vai, assim, sendo redi- recionada para a satisfação de projetos egoístas caracterizados por uma vacuidade extrema, autênticos sorvedouros de recursos sem qual - quer interesse para o cidadão comum. Urge, por conseguinte, repensar que rumo pretendemos seguir enquanto sociedade - o da promoção da nobre procura do conhecimento ou da autogra- tificação e publicitação própria desligadas do interesse público. João Patrício, mestrando em engenharia física, IST

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Quadrante,2021

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