Quadrante 14

O autor involuntário

“(...) eu tentarei uma vez mais o regresso

ninguém, a literatura é o mais secreto fóssil da vida humana, colaboremos assim para que não se perda a tradição de pregar uma rasteira à pe - quena criança. Não deixa de ser cómico a forma infantil como ocultamos o facto de escrevermos, com um sorriso meio tímido dizem-me “sim, já escrevi, estava triste” e “precisava de exprimir o que não conseguia, o papel não me julgará” e nós sorrimos e pensamos “eu também mas tu não sabes”, tingindo aquele encontro de olhar que abraça, a simplicidade do olhar face à ino - cência só se apresenta em dois casos: ou obser - vas alguém que dorme ou observas alguém que lê algo que escreveste. A maior parte dos nossos vestígios de vida nunca saiem para o abraço da luz do dia, continuam fechados nas gavetas e no fundo de um telemóvel, de vez em quando, aquele que nada tem a perder, pega nos rastos de vida que deixou tingidos no papel e publica - -os, sendo muitas vezes decobertos pelos que tencionam fazer da vida dinheiro, transforman- do um testemunho de vida numa bíblia pesada e de interpretação duvidosa. O testemunho de ser humano é difícil de passar, aquele nosso colega da frente, que corre loucamente, está cada vez mais longe e estamos cansados, não existindo

ao simulacro da vida: escreverei.”

Literatura, experiência desastrosa para a alma leve, uma daquelas para guardar na gaveta e apenas retirar quando a alma pesada e já poei - renta o necessitar. Todos já escrevemos, nem que sejam duas palavras, fomos o autor do nos - so mundo, vivemos tanto para um ser humano anatómico e responsável que tivemos que pegar na caneta e com a tinta azul ou preta, tingimos as paredes do quarto com as cores que não po - demos representar num mundo cinzento e de fantasmas que sorriem. Alegres crianças que comem gelados com a testa, dissemos:“ essa gente que escreve, são todos doidos” e agora somos essa gente, os doidos, que escrevem. Esta visão infantil em muito é devida ao ensino lite - rário, que como uma mãe a dar comida ao filho, diz: “ abre a boquinha, lá vem mais uma histó - ria de vida, que temos que acabar até amanhã, devido ao pouco tempo que temos”, todo um cenário criado: obras desfazadas da maturidade dos alunos, apelo ao técnico e histórico descu - rando a verdadeira cor da obra, obras tratadas como se do céu caíssem. Não podemos culpar

78

Quadrante,2021

Made with FlippingBook Digital Publishing Software