Quadrante 14
diálogo entre gerações, preferimos aproveitar o abismo que se aproximará sozinho e apenas com o aviso da intíma e sábia amiga da literatu- ra. Podemos imaginar filosofia e literatura sen - tadas num café qualquer e enquanto uma chora a outra com um olhar sereno diz: “ amiga, eu vou dar-te o verniz protetor para passares na unha sanguenta”, amigas de sobrevivência à condição humana. “Não matem a arte literá - ria”, podemos pedir, mas ela nunca nasceu, nunca foi vida, foi sempre cemitério de peles que vestimos durante a vida, de imagens dema - siado violentas para os medíocres sentidos hu- manos que temos, foi tristeza demasiado poé - tica para se espelhar apenas em gritos bebâdos num café com o amigo, foi toda a complexidade linguístico-metafísica, corporal, sexual e es - piritual de um ser humano. Esta complexidade enquanto máquina permite-nos transformar a dor de uma queimadura, na dor de morrer quei - mado, apenas através de palavras bem coloca- das e sentidos apurados, um amigo escreveu “ para ser poeta é preciso experimentar tudo, até a morte”, somos todos poetas das nossas ruas, a tristeza abre portas e fica com as chaves. Fuma - mos cigarros na cama enquanto a cabeça canta umas palavras soltas, vimos a cinza ainda aces- sa a queimar o lençol, o cheiro e a aspereza da textura deixada, transforma um acidente nuns três versos decadentes, tiramos fotografias a pequenos corpos, retirando-lhes as entranhas, soprando lá para dentro para que voem, a mão fria nas costas é mais fria quando escreves. O ato de escrever confere a corporalidade neces- sária à vida psicológica e espiritual, a fossa das
marianas por explorar, ignorada e esquecida, porém, a literatura revela-se como sendo um grande espelho da vida interior do ponto de vis- ta microscópico. O cientista observa o interior dos tecidos desorganizado, núcleos estranhos e em caótico estado, a atividade do escritor, não se afasta, de uma visão psicológica que não é possível ter a olho nú. É preciso recordar Al Ber - to, o poeta maldito, formado em belas-artes, leitor, escritor e sofrido, transformou a poesia portuguesa, sendo ele próprio apenas, não es - queçamos o exemplo que nos deixou. Exemplo este que sublinha de facto a origem da escrita, realçando a origem da vontade de escrever, não só académica, mas pessoal, “a escrita vem de uma perturbação” disse numa entrevista. De - vemos contribuir para destruir a ideia elitista de que nos círculos literários, póeticos ou artisti - cos só existe lugar para a espécie desconhecida denominada por “intelectual”, a arte é de quem a produz, de quem a ama e sobretudo de quem precisa dela para viver com conforto e tranquili - dade. Tudo o que foi apontado neste texto, tem o objetivo de destruir visões classicistas e falacio - sas da relação escrita-escritor, por esse motivo, abram-se as gavetas, mostrem-se as notas do telemóvel, tinja-se o ar à nossa volta sem pie - dade com as cores que formam o nosso espectro. Como nos festivais, abram-se aqueles foguetes de cores e com orgulho, mais ou menos fingido - res, metaforsearemos a obra em vida e a vida em obra, continuando a passar a rasteira literária a todas as crianças-adultas que escrevem. Marta Gondar- Estudante de Direito (FDUL)
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Quadrante,2021
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