Quadrante 15

são pessoas como eu, como o leitor deste texto e como todos aqueles que nos rodeiam. No que diz respeito à prática de crimes contra crianças, o Direito Penal move-se num campo ainda mais instável: o campo das relações familiares e de confiança, definido socialmente como um espaço de segurança, carinho e afeto, especialmente no que se refere à infância e à relação familiar pais-filhos; no entanto, é preciso reconhecer que estas relações são terreno fértil para a existência de inúmeras problemáticas sociais. Mais, sucede muitas vezes as crianças não serem sequer percepcionadas como verdadeiros seres humanos mas antes como pequenas criaturas indefesas que não conhecem a vida e devem ser protegidas a todo o custo. O problema desta visão não é ser objetivamente falsa, mas o aproveitamento mediático que dela se faz, procurando certos órgãos de comunicação social exponencializar significativamente o sentimento de incompreensão e raiva por parte da comunidade: afinal, qual é o verdadeiro objetivo da comunicação social em documentar o funeral de uma criança alegada vítima de homícidio? Ou o objetivo de entrar e gravar o quarto dessa mesma criança? Ou o objetivo de documentar continuamente o suposto contexto em que o crime ocorreu? Se o objetivo é repudiar as condutas atentatórias à dignidade da criança, esse objetivo não está a ser cumprido a partir do momento em que as práticas jornalísticas violam os limites dessa mesma dignidade (quer da criança quer da família). O objetivo que está antes a ser cumprido é a exponencialização do sentimento retributivo, fortalecendo ainda mais o caminho da vingança, o que tem pesadas consequências na visão da comunidade sobre as instâncias a quem compete fazer cumprir a lei. Ocorre um aumento do apelo à vindicta privada, devendo a comunicação social ser responsabilizada pelo seu efeito, tendo em conta as competências da Entidade reguladora da comunicação social.

Assim sendo, a finalidade retributiva exerce de acordo com a Sra. Prof. Maria Fernanda Palma, um importante papel no preenchimento das expectativas comunitárias da justiça “é inegável que a pena preenche necessidades de retribuição, explicáveis num plano psicanalítico, cuja não observância pode pôr em perigo a paz pública”2 . Socialmente, a confiança no sistema penal radica ainda na aplicação de uma pena eficaz de forma rápida e justa. À finalidade retributiva radica uma lógica sinalagmática de justiça (facilmente apreendida pela psique humana): se A pratica um crime, então deve ser punido por esse efeito. Já as lógicas reintegradoras envolvem um subjetivismo superior, bem como um maior afastamento psicológico da comunidade relativamente ao crime praticado e consequentemente uma aproximação ao contexto do criminoso. A situação atual em que vivemos é dominada por uma tentativa de polarização societária, através de uma divisão da sociedade em grupos: o grupo dos bons e o grupo dos maus, em que os bons são intrinsecamente bons e os maus são intrinsecamente maus, não havendo solução para a repugnância dos seus atos. Este contexto fortalece a desumanização do crime, pois o autor de um ilícito criminal deixa de ser visto como uma pessoa normal com vida pessoal, familiar e social para ser visto como um monstro escondido no escuro - um caso puramente excepcional. Porém, é necessário ter em mente que o crime não é um evento excepcional, mas sim uma realidade social que ocorre a todas as horas, minutos e segundos. O mesmo se passa quanto aos crimes praticados contra crianças; de acordo com uma estatística encetada pelo jornal Diário de notícias há “sete crianças vítimas de maus tratos por dia”3 . Lamentavelmente, nem todos os agressores são conhecidos ou noticiados nos órgãos de comunicação social, mas os “monstros de Setúbal”

1 NUSSBAUM, Martha. Anger and forgiveness. Oxford University Press, p.2 2 PALMA, Maria Fernanda. Direito penal: Conceito material de crime, princípios e fundamentos. AAFDL, 4ª Edição, p. 59. 3 https://www.dn.pt/sociedade/sete-criancas-vitimas-de-maus-tratos-por-dia-agressoes-sao-maiscrueis-6236391.html

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Quadrante, 2023

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