Quadrante 15

mas também na forma como o resultado foi obtido. Num simples e idêntico exercício de se recolocar na última ceia, David LaChapelle criou uma série denominada Jesus is my Homeboy, cuja premissa jaz na reencarnação de Deus não na Palestina do séc. I, mas sim nos EUA do séc. XXI, e inclui uma peça homónima à de da Vinci. LaChapelle recupera a ideia dos apóstolos não pertencerem às classes sociais mais elevadas, nem possuírem as maiores riquezas, “they were sort of the dreamers and the misfits”. LaChapelle canaliza o objetivo de voltar aos ensinamentos de Cristo, através de personagens de diferentes passados e aparências e estilos, reiterando que Jesus seria quem se daria com aqueles que vivem à margem: pobres, prostitutas, traficantes e gangsters. Aqui, temos o contraponto de duas obras com o mesmo tema, com a mesma finalidade (difundir a fé) e com o mesmo meio emotivo, criando choque e provocação no âmago do observador. De facto, a série artística de LaChapelle reitera a intemporalidade da obra de da Vinci; desde logo, numa primeira impressão, rapidamente associamos as duas peças pelo seu nome e composição. E depois existem exemplos particulares como o da Sagrada Família de Antoni Gaudí. O Templo Expiatório (que para todos os efeitos ainda não está terminado) detém uma imponente fachada revolucionária; a sua altura majestosa e as diferentes e estranhas torres, os jogos intrigantes de chiaroscuro, os vitrais, as mensagens escondidas quer no exterior quer no interior do edifício, bem como a sua relação com o fim trágico de Gaudí, atraem milhões de visitantes anualmente. Contudo, a obra permanece inacabada - será que podemos então catalogá-la como intemporal? Passados quase cem anos da morte do arquiteto, o Templo nunca permaneceu igual e quem todos os dias o admira vê-o sempre num estado

divino. De facto, diz-se que o quadro é inspirado em Simonetta Cattaneo Vespucci, uma mulher muito estimada e admirada por dois dos irmãos Medici, tendo Sandro Botticelli sido por eles contratado para pintar o quadro em análise. A pele clara, os caracóis semelhantes a fios de ouro e os lábios rosados são três dos cânones criados por Petrarca para descrever a mulher perfeita; contudo, foi essa delimitação que inspirou diversos artistas ao longo dos séculos a criar a sua própria versão do tema. Num ato de verdadeira revelia, outros experimentaram novos meios artísticos para expor o seu conceito de mulher perfeita, gritando contra as ideias racistas e sexistas por detrás de uma delimitação forçada de uma noção de ser. Um destes divergentes é Yin Xin - artista nascido na China (igualmente limitado pelo partido) que teve a oportunidade de ver uma reprodução do original italiano e se agarrou ao conceito. Daqui nasce Venus, after Botticelli, em que os caracóis loiros e outros traços europeus são substituídos por longos cabelos negros e feições asiáticas. Rachando o ideal de Petrarca, apresenta nos um exemplo de como a finalidade de um quadro - a representação da Mulher - transpôs o próprio original de Botticelli, cimentando precisamente esta obra intemporal ao representar perfeitamente uma mensagem transversal na sua essência imperfeita. Vejamos, portanto, agora a adoção do método. Leonardo da Vinci pintou o fresco A Última Ceia que, por representar um episódio bíblico, suporse-ia não conter em si uma mensagem deixada pelo artista, mas antes pelo contrário: da Vinci criou uma peça reacionária ao tentar colocar-se na posição de cada um dos intervenientes da cena e demonstrar as suas diferentes expressões face à descoberta da traição de um deles (indignação, surpresa, apreensão, ódio) - ou seja, talvez o cerne do fresco não esteja só no que foi representado,

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Quadrante, 2023

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