Quadrante 15

houve inovações técnicas que transformaram radicalmente o acesso ao saber. A existência de novas tecnologias transformou disciplinas como a filologia em coisas ociosas. Há quarenta anos, quando se via uma citação num texto tinha de se ter um trabalho filológico e entrar na barriga da baleia, que é a biblioteca, e procurar o lugar de origem dessa citação. Isto podia demorar meses, um ano ou até nunca; hoje a pessoa escreve no Google e aparece. Este trabalho, para o qual muitas pessoas tinham um talento particular, tornou-se obsoleto, acabou por desaparecer. Quando fala sobre os Estados Unidos, percebe se que tem um interesse especial pelo país. Tem que ver com o seu percurso académico? Estou ligado à literatura inglesa e norte americana por questões de treino e ensino, mas actualmente há uma espécie de grande exultação anglo-saxónica em Portugal. Toda a gente tem uma costela anglo-saxónica. Eu acho isso absurdo, eu continuo a ter admiração pela cultura francesa, italiana ou alemã. A cultura francesa é uma cultura única e absolutamente extraordinária, é uma pena que o acesso dos estudantes portugueses à cultura francesa se tenha perdido devido à língua - o que estão a perder é uma coisa gigantesca, quase como perder o Pacífico. Relativamente aos EUA, não é tanto pelo facto de ter estudado lá, é de que muito daquilo que se passa hoje e se discute em todos os países europeus e asiáticos tem origem norte-americana. Quando se fala em Portugal de estudos Queer entende-se que nem há a capacidade de se arranjar uma designação própria para o campo, e o campo só existe porque começou por existir nos Estados Unidos. Não estou a falar de condutas e de identidades, essas existem - as pessoas são o que são. Um campo com essa designação e com dignidade disciplinar suficiente para ser acolhida no currículo, só acontece porque já foi acolhido

aquilo a que se chama nos Estados Unidos de Liberal Arts, que é os Estudos Gerais.

A Universidade portuguesa deveria redefinir a sua estrutura com base nos Estudos Gerais? Com certeza, só tinha a ganhar. Nos Estados Unidos, uma pessoa antes de estudar Direito estudou Liberal Arts durante quatro anos, onde estudou Álgebra, História da Arte do Renascimento, Literatura Francesa do século XVII, Astronomia, e, só depois disso, é que vai para Direito, onde tem dois anos bastante intensos em redor do Direito. O mesmo acontece com Medicina, em que só se estuda depois das Liberal Arts; é possível antes de se estudar Medicina fazer uma série de cadeiras que já estão ligadas e que vão ajudar no curso, mas também vai ter de estudar Literatura, Álgebra ou Astronomia. Qual é o ganho disto? Vê-se pela negativa: quando nós falamos, por exemplo, da relativa imaturidade de juízes em Portugal, que numa posição inicial desconhecem a vida social mais lata, isso vem justamente de um afunilamento da preparação. Muitas das falhas deontológicas, que vemos em certas profissões, vêm dessa falta de amplitude de conhecimento. Nos Estados Unidos, a erosão deste modelo é marcada, nos anos sessenta o major com maior exposição era capaz de ser Literatura Inglesa; isto acontecia no país do almighty dollar, porque não era isso que decidia a empregabilidade. Hoje os majors em literatura são minoritários e estão em declínio, e eu penso que é um declínio justificado pela politização das Humanidades, em que se consegue adquirir um aparato idiomático em quinze dias e em que se convive bem com a erosão da leitura. A culpa não é só dos professores de Humanidades. Tem factores externos... Sim, tem a ver com o que é hoje necessário para se viver economicamente numa cidade, com a insegurança do mercado do trabalho e também

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Quadrante, 2023

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