Quadrante 15

As pessoas ignoram que aquilo é um estado federal mas geograficamente é um continente que deve ser comparado com a Europa no geral, que tem uma diversidade extraordinária. Porque é que questões de identidade, sexo ou género, que são hoje o vocabulário de quase todo o discurso público, têm origem norte-americana?: a resposta tem a ver com o que é uma democracia, e a democracia norte-americana, ao contrário do que se pensa, é a democracia liberal mais avançada do mundo. Nos EUA, a identidade íntima, se permanecer íntima, é um problema privado, no entanto, se uma série de pessoas com a mesma identidade íntima conseguir federar-se e ter a capacidade de se traduzir como um grupo constituinte da sociedade e ser reconhecido como tal, então essa questão passa a ser uma questão social e pública. Tudo isto representa uma progressiva inclusão de novos grupos que não estavam sentados à mesa, porque a lógica democrática é igualitária e a lógica do igualitarismo é sentar mais grupos à mesa. Como é que estes grupos se constituem? Pela estridência e pela veemência, e é isso que leva as pessoas a rir, sem perceber que as pessoas não reconhecem a sua existência sem essa veemência, pois faz com que alguém no Wyoming leia ou veja que alguém em Washington fez uma manifestação sobre algo que também lhe diz respeito. Este impulso igualitário é decisivo numa sociedade democrática, mesmo quando essa sociedade é profundamente desigual a nível económico, porque a desigualdade económica coexiste com a lógica cultural ou social igualitária. A eleição do Trump tem a ver com este movimento, é devido ao facto de um universo eleitoral ter conseguido federar uma série de ressentimentos e de posições que encontraram um ponto de articulação na figura de um demagogo. Vários inquéritos mostram que os portugueses leem pouco. O que é que acha que afasta as pessoas da leitura?

nos Estados Unidos. No outro dia estava a ler um relatório sobre a diversidade étnica na Ópera de Paris, onde o parágrafo inicial começava por dizer que tudo se alterou com o Black Lives Matters. Eu leio isto e acho extraordinário, porque a Ópera de Paris faz uma análise desta natureza que é determinada por um acontecimento norte americano. A maior parte destas agendas são objecto de debate muito intenso, e em Portugal nós vemos isto quando lhe chamamos de questões fracturantes; fracturante é o adjetivo que é a raquete para bater contra esta bola, é quase como uma presunção que uma democracia não devia ter questões fracturantes - uma democracia, por definição, está fracturada. Tudo isto viaja para cá sob uma forma distanciada da sua origem, e as pessoas riem-se e dizem: "veja lá, que há pessoas que dizem que são não-binários”; este é um riso que ignora a origem séria da questão, do seu alcance social e do que está em jogo. Este debate tem uma origem externa, uma origem norte-americana, e a questão mais interessante é saber porque é que estas questões têm uma capacidade de exportação. Sabe responder a essa questão? Os EUA têm um problema de percepção na Europa e no mundo inteiro. O espectáculo da política interna e a polarização muito intensa dos últimos tempos faz com que muitas pessoas descrevam isto como a base para uma guerra civil. Isto não é surpreendente para quem conhece uma realidade tão dinâmica como a norte-americana, onde é impossível prever o que é que vai acontecer daqui a um ano. É possível perceber o que vai ser de Portugal não daqui a um ano, mas daqui a cinco ou mais anos. Nos EUA, a sociedade é tão dinâmica que se uma pessoa olhar para os últimos cinquenta anos e decidir escolher datas com uma diferença entre si de cinco anos identifica sempre algo mutável.

Quadrante, 2023

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