Quadrante 15
um modo incomparável a qualquer psicoterapia. O conhecimento de alguém que passou por um inferno desses e que teve a capacidade extraordinária de articular a natureza infernal pode abreviar tempo ao leitor, porque é algo que preocupa ambos. Pode ficar anos a tentar fazer uma omelete, e, se calhar, alguém pode explicar lhe isso e abreviar-lhe tempo. Há pouco falava sobre cultura ou pessoas cultas: o que é uma pessoa culta? Como define a palavra cultura? A concepção histórica de cultura em Portugal resulta do que, e agora vou usar uma expressão que eu normalmente nunca uso, mas aqui faz sentido, de uma espécie de capital social de uma certa classe. Havia uma certa classe, uma pequena burguesia intelectual que detinha um capital social que era um certo saber: um mexer-se com à-vontade com um certo tipo de referências e com um certo tipo de nomes. “Ser culto” associava-se às pessoas que faziam valer a sua familiaridade com alguns nomes e livros. Entretanto, esta noção progrediu, as referências vão mudando à medida que o tempo progride e tem de se ter uma certa familiaridade num certo sistema. Se perguntar a alguém o que é ser culto, terá a resposta de que é saber muita coisa: saber o que é que foi a Guerra dos Sete Anos ou o que foi o Tratado de Vestefália. Quase como ganhar os concursos de televisão… Exato, portanto é saber muitas coisas. Aquela pessoa que tem tudo na ponta da língua pode ser culta, mas quem tem a capacidade de saber onde ir buscar ou activar algum tipo de informação também o é. Mas, mais do que isso, eu acho que considerar alguém como culto tem mais a ver com a forma como se coloca num domínio ou com a configuração da identidade mental da pessoa do que com a aptidão de invocar nomes. A pessoa que passou por muitos textos e referências destilou isso em certos modos de
são muito importantes para nós, porque nós não estamos sempre no modo de pensar ou de trabalhar, nós estamos muitas vezes no modo de bocejar, de sentir que estamos acompanhados e que não estamos sozinhos. Portanto, eu não estou a defender um à exclusão do outro, estou só a dizer que neste cocktail que é a experiência da vida das pessoas, você consegue encontrar a melhor conversa. Também há um ponto adicional, porque não é apenas a melhor conversa, é que muito daquilo que está escrito toca nos limites daquilo que é possível conhecer - já houve cabeças que resolveram aquilo que para si é difícil e que o levaram a um ponto adicional que você nem suspeita. Há outra possibilidade que é dizer: “ah, eu não tenho interesse nisso”, com certeza, também não acho que deva, não é uma questão de dever ter ou deixar de ter, se tiver uma pretensão de querer saber um pouco mais sobre o lugar onde existe, sobre os constrangimentos do seu corpo e da sua mente e sobre a capacidade de lidar com esse constrangimento, se quer saber alguma coisa de modo sério sobre isso, há pessoas que já pensaram nisso antes de si muito melhor do que você poderá pensar por si. Agora, é uma questão: se quer abreviar tempo e quer passar a esse tipo de análise, então está aqui. Não quer? Com certeza, podemos ir beber uma cerveja e está tudo certo. É interessante que o seu argumento contraria aquilo que genericamente se diz sobre o factor tempo afastar as pessoas da leitura, porque está a dizer que a leitura poupa tempo. Claro. Por exemplo, suponha que alguém está numa relação amorosa infeliz e é vítima de um ciúme muito angustiante que parece não fazer sentido porque não consegue articular o que se passa. Pode passar anos a tentar perceber isto e pode não chegar a nenhuma conclusão ou pode chegar a uma conclusão que não consegue perceber. Há descrições nestes objectos arcaicos que analisam profundamente essa condição de
Quadrante, 2023
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