Quadrante 15

falam de um modo imediato e reconhecem-se. Porquê? Porque ambos já dispõem desse universo, e até podem falar por meias palavras. Isso não está muito distante da forma como descreve a relação de Joyce com a Cultura. Sim, o Joyce é o melhor exemplo de como a cultura não está segregada da vida. Nós podemos dizer que o “Ulysses” é uma suma da literatura, de uma série de tópicos da cultura ocidental. Isto é uma definição rápida e que as pessoas podem fazer. O Joyce foi educado num colégio de Jesuítas e leu São Tomás, os Escolásticos e também leu selvagemente muitas outras coisas. Com isto, podemos dizer que isto é a cultura do Joyce. Mas em Joyce, tal como em Dante, uma atividade escatológica do corpo existe no mesmo espaço da Suma Teológica. A Suma Teológica não está separada das provações do meu corpo, os aspectos digestivos e a Suma fazem parte da mesma coisa. Para o Joyce, estas coisas estão todas ligadas na existência da pessoa; isto é uma noção de cultura muito mais rica e muito mais intensa, para uma pessoa dessas não há distinções entre o que se lê e o que se come e como o seu corpo vive, toda a sua existência faz parte de um contínuo e tudo isto é um modo de fazer sentido e de existir. É difícil dizer a uma pessoa destas o que é ou não é ser culto, porque essa pessoa vai questionar o que é que isso quer dizer. Nos ensaios de “Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes)", (INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2016), o Professor recorre muitas vezes a factos para lá do texto, retirados da correspondência e de outros textos de Pessoa, para reforçar a sua tese. Acha que este exercício valoriza e fortalece os argumentos? Essa é uma questão muito interessante da qual se podia escrever um livro. Durante muito tempo, era ilegítimo na crítica literária ou na análise do texto invocar o seu autor. Não se podia invocar

posicionar aquilo de que se fala, que pode não ser um conhecimento explícito mas que é um modo tácito de se colocar face ao que fala e de saber o que tem que fazer se for necessário dar robustez à posição que defende. Há um exemplo maravilhoso disto na literatura, que é o Swann, o personagem do Proust no “Em Busca do Tempo Perdido” é reconhecido como a pessoa mais culta do círculo que habitava. Todos sabiam que ele era um especialista em arte, mas se alguém lhe perguntasse o que é o Renascimento em arte, o narrador diz-nos que a resposta do Swann àquilo vai ser: há uma pequena igreja que tem uma janela no transepto, mesmo ao lado da nave lateral, que é a melhor definição do Renascimento. Ou seja, o Swann era incapaz de dar uma descrição genérica e abstrata, tinha sempre de recorrer a um ponto particular que ilustrava isso, eu acho que isto é uma coisa muito profunda. O Swann sabe que a definição de Renascimento que se encontra num compêndio ou num livro de história ou num curso está essencialmente errada, (apesar de estar certa), é vácuo e não há ganho nenhum nisso. Ele não tem a capacidade de fazer uma descrição genérica porque o que a definição vai subsumir é tão complexo e rico que ele não consegue contrair toda a complexidade debaixo de uma definição de um estudante de liceu ou de um professor. O objeto Renascimento é muito mais intratável para Swann do que para um estudante ou para um professor de História. A única coisa que ele consegue fazer é ir buscar uma pequena evidência, que é casual, e tentar explicar à pessoa que a sua preocupação se condensa em olhar para aquilo. Mas isto não é uma boa resposta, porque isto não tem generalidade, uma pessoa pode ir ver a janela e dizer: "não percebi o que aquilo queria dizer", porque aquela janela está num contexto complexo e rico que Swann dispõe e que a pessoa não dispõe. Agora, se aparecer alguém que, tal como Swann, conhece o Renascimento e sabe a extensão da riqueza do que aquilo é, aqueles dois

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Quadrante, 2023

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