Quadrante 15
é uma parte decisiva da obra do autor, apesar de ser póstumo; mas estas exclusões foram caindo progressivamente. Desse ponto de vista metodológico, hoje é uma espécie de anything goes: as pessoas podem usar aquilo que quiserem, mas isso traz um requisito adicional - tem de se ser persuasivo e o assentimento do leitor fica dependente da relação que você estabelecer. da objectividade ou subjectividade dos juízos. Dizer-se que o juízo estético é objectivo é um ponto kantiano. Mas eu falo disto para combater várias ilusões que existem hoje. Quando alguém nos responde: “desculpe, isso é a minha interpretação” depois de as questionamos sobre aquilo que disseram sobre, por exemplo, um texto, esta pessoa está a dizer-nos que a interpretação que está a apresentar é boa porque é sua - uma pretensão altamente problemática, pois é o mesmo que uma pessoa dizer que "é a pessoa mais bela da Península Ibérica" e depois de as questionarmos defende isso com um: "desculpe, mas isto é a minha opinião”. Isto quer dizer que a opinião daquela pessoa é verdadeira porque é proprietária daquela opinião. Isto é absurdo. Outra ilusão conexa a esta é quando uma pessoa diz que uma posição é muito subjectiva, ou que algo é subjectivo. Isto parece querer dizer que a validade de uma posição está ancorada em nada, que é por uma questão de simpatia ou de afinidade que eu posso concordar ou discordar, ou que a palavra subjectivo é sinónima de algo arbitrário. Há juízos subjectivos sobre uma obra de arte que não se conseguem objectivamente fundar nas propriedades do objecto - isto é, eu não consigo radicar o juízo que faço no objecto em si, e por isso o que eu digo é caracterizado como sendo subjetivo. Mas um juízo subjetivo A persuasão dos argumentos parece perder importância quando hoje falamos
a correspondência ou a vida do autor, porque ao fazê-lo estaríamos a incorrer na chamada falácia intencional, no erro de presumirmos que seríamos capazes de identificar a intenção do autor, seria uma forma de telepatia com um autor insondável, morto. Por isso tínhamos de nos cingir exclusivamente ao texto e à evidência do texto. Isto foi assim durante muito tempo, por exemplo no chamado New Criticism norte americano. Mas as pessoas começaram a aperceber-se que em certos autores nós temos de entender que certos modos expressivos ou movimentos mais enigmáticos podem ser explicados ou são reproduzidos em cartas ou notas desse mesmo autor. A ideia de que há um erro em invocar a intencionalidade do autor acabou por desaparecer, a posição certa é que tudo aquilo que um autor escreve é usável. Mas eu não posso ter a presunção de apenas afirmar que um romance de um autor tem que ser lido à luz desta carta; isto requer um argumento - tenho de explicar de um modo persuasivo porque é que esta carta me ajuda a explicar este texto, para que o leitor do meu ensaio diga: "interessante, agora percebo". No fundo, não há nada que seja declarado ilegítimo, tudo aquilo que o autor escreve pode ser lido e considerado, mas tem de se perceber que há uma diferença de género, há limites. As relações que eu estabeleço têm de ser do interesse de um argumento, esse argumento tem de ser capaz de invocar a evidência de um modo pertinente e relevante. É a prova do pudim, só percebemos quando o comemos. O caso de Fernando Pessoa é muito interessante, porque algumas pessoas diziam que só se devia ler o que Pessoa publicou em vida, e tudo aquilo que ele deixou inédito não deveria ser considerado. Mas, para este argumento há o contra-argumento que é dizer: se for assim, o Livro do Desassossego não é uma obra de Pessoa, porque a primeira vez que foi publicado foi em 1982, e ele morreu em 1935. Isto seria absurdo. O Livro do Desassossego
Quadrante, 2023
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