Quadrante 14
dos) et demos (população, povo, gente)—aquilo que afecta todos, sem excepção. Um raciocínio semelhante se poderia aplicar ao Latim, àquela que foi a língua da ciência europeia durante vá - rios séculos e que ajudou a moldar o respectivo vocabulário médico. Contudo, reduzir a análise a um mero utilitarismo programático privar-nos-ia de en- tender de maneira mais geral o quadro da época. Nomeadamente, a forma como tais escolhas re- flectiam, acima de tudo, o idealismo marcante de uma certa visão do conhecimento no Ociden - te, onde a necessidade de um saber abrangente e universal imperava. Hoje tal não faria sentido. Qualquer tentativa de transpor semelhantes es - colhas para uma realidade contemporânea ter- minaria condenada ao insucesso, ou no melhor dos casos, a um certo desconforto face a uma tal possibilidade. Hoje são cada vez menos os alu - nos que se predispõem a estudar Grego ou La - tim. Um número progressivamente menor que choca com as vozes que constantemente se er - guem para questionar a sua utilidade, de uma língua morta ? Foi esta realidade que, numa das últimas entrevistas antes do seu desapareci- mento, Maria Helena da Rocha Pereira carac- terizou como “sintomas de ignorância”, uma forma de cegueira colectiva. Posto isto, a crescente perda de interesse pelo estudo do Grego e do Latim não é senão o sintoma de um fenómeno bem mais abrangen - te, onde o estudo das humanidades é tido como constantemente relegado para um segundo plano. A temática está longe de constituir uma novidade. Raras foram as épocas emque a ques - tão não se colocou. E sem surpresa, variadas respostas e pretensas soluções foram sendo su - geridas. A falta de sucesso deste tipo de aborda- gem sugere-nos que temos estado a olhar para a questão de maneira incompleta. Serve por isso a presente reflexão para propor um esquema de
análise alternativo sobre a pretensa crise das Humanidades.
Historicamente, percebemos que um dos pontos chave desta narrativa surgiu a meio do século XIX. O debate adquiriu uma nova forma a partir do momento em que a filosofia natu - ral reclamou para si a exclusividade no uso da designação de ‘ciência’. Não podendo então ser ‘ciência,’ o campo das ‘humanidades’ não mais deixou de se sentir constantemente em perigo. Prova disso têm sido desde então os inúmeros apelos à gravidade da situação, seja sob a forma de livros que quase parecem suplicar que se faça alguma coisa para inverter o rumo, quer através de gritos de revolta perante a lassidão política. Ao olharmos para aquela que tem sido a resposta típica dos defensores das humanidades, rapidamente nos apercebemos de um padrão. Esta estratégia tem insistido em demonstrar que as pretensamente ‘inúteis’ humanidades são, pois bem, afinal bastante úteis. Aos que cinicamente questionam a utilidade dos sabe - res humanísticos, exige-se contrariá-los mos - trando-lhes precisamente o contrário. Assim, podemos ler Frederico Lourenço relembrar-nos que “a ideia da pretensa inutilidade das línguas clássicas é um enorme equívoco,” ou Martha Nussbaum que refere o modo único como as humanidades permitem que “as pessoas sejam capazes de reconhecer os outros seres humanos como pessoas na sua totalidade igualmente ca- pazes de pensamentos e de sentimentos”. A estratégia é certamente meritória. E deverá ter sempre lugar no debate público tan- tas vezes deformado pela superficialidade do argumentário. Afinal de contas, permite-nos compreender e enquadrar uma parte do valor de um saber tantas vezes tido como socialmente inferior a outros. Ainda assim, não nos permi - te encarar o problema na sua totalidade. O que
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Quadrante,2021
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