Quadrante 14
nos interessa aqui propor não é uma reflexão sobre a suposta utilidade ou falta dela dos sabe- res humanísticos, mas ao invés, de questionar o porquê de uma tal pergunta. Aceitar responder à questão é, antes de mais, validá-la como per - tinente, e é exactamente isso que nos interessa aqui questionar. Quando o plano de estudos de Medicina foi finalmente modificado pela direcção da Uni - versidade de Coimbra na viragemdo séculoXX, a universidade procurava responder a uma reali- dade social em transformação vertiginosa. Esta nova realidade social no Ocidente clamava por uma maior especialização, uma mais eficiente aplicação de conhecimentos técnicos e, conse - quentemente, instigava a uma separação dos saberes. O resultado traduziu-se por isso num aumento das disciplinas académicas ao longo do século XX, aumento esse que desde então nunca mais cessou. Àmedida que as instituições universitárias se adaptavam à crescente neces- sidade de quadros cada vez mais especializados nos diferentes sectores da sociedade, o debate sobre o valor de cada forma de conhecimento tornou-se cada vez mais um foco de necessida- de. De um lado, os que clamavam pela crescente especialização como factor de sucesso, do outro os que insistiam na necessidade absoluta de um conhecimento generalizado. Dificilmente alguém terá antecipado melhor o curso do problema institucional em curso do que o sociólogo alemão, Max Weber. Quando Weber se referiu ao “desencantamen - to do mundo” numa conferência em 1917 sobre o papel da Ciência na constituição da sociedade moderna, este tinha já em perspectiva aquela que era uma organização social desde então to - talmente centrada em torno da necessidade de conhecimentos técnicos. O que Weber anteci - pou antes de todos os outros foi que no “espíri - to do capitalismo” que então despertava na sua
voracidade, o sistema educacional do passado já não mais voltaria, nem seria possível. Se os sistemas de educação não são senão protótipos para a conduta a adoptar ao longo da vida adul- ta, caberia então ao sistema educacional passar a produzir também ele ‘adultos’ que correspon - dessem ao que a sociedade contemporânea mais passava a valorizar. Ao ideal do “universal,” Weber antecipou a forma como a sociedade ca - pitalista preferiria o “especializado”. Este quadro permite-nos compreender que, na ausência do factor social e económico, não poderemos compreender o fenómeno das humanidades e muito menos da sua pretensa ‘crise’. O modo como se valorizam diferentes áreas do conhecimento só adquire a sua for - ma através dos quadros institucionais, sociais e económicos que permitem, antes de mais, que ele exista. Como o sociólogo Steven Shapin nos recorda, o “conhecimento é verbalizado através das instituições; está implantado nas práticas do quotidiano da vida social.” Por outras palavras, só poderemos analisar o conhecimento e a sua possibilidade se tivermos em conta o contexto institucional em que o mesmo despoleta. Mas reconhecer essa conotação institucional do co - nhecimento é também recordarmo-nos de que as instituições têm elas mesmas uma depen - dência social e económica bem definida. A conclusão torna-se praticamente ime - diata : as humanidades não estão emcrise. Nun - ca estiveram. O que é bastante diferente de re - conhecer o problema de valorização social que as mesmas enfrentam presentemente. De tal modo que deveríamos interrogar, antes sequer de tentar responder a qualquer outra questão, qual tem sido o papel das instituições na cria - ção da ‘crise’ das Humanidades. Enquanto en - tidades que geram conhecimento e que formam alunos, são elas os principais veículos da trans - formação social. Mas que tipo de alunos têm
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Quadrante,2021
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