Fiel da Balança 2020

IELDA LANÇA FIE BAL FIELDA BALANÇA

ELDA ANÇA

FIEL BAL

FICHA TÉCNICA

COORDENADOR E EDITOR

Raquel Ferreira Morais

CRONISTAS

Ana Pereira Coutinho Inês Bastos João Marujo João Moreira da Silva João Salazar Braga José A. P. Santos Margarida Vidal Sampaio Maria Beatriz Tacão Maria Inês Morais Rafaela FIgueiredo Dias Raquel Moreiras Francisco Conde Belo, IADE Luana Colla Mitchell, FDUL Luka Cencini Grean, FDUL Teresa Sousa Pinto, IPAM

ILUSTRADORES

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03 26 38 54

FACULDADE Saber onde Inovar O Direito ao desprendimento

Quando crescer (não) quero ser advogado Ser aluno da Clássica mais dois anos? Sim! Quem se anuncia é o trabalhador-estudante

ERASMUS Pádua (Chegada) Intercâmbio em Macau

ÍNDICE

AÇÃO SOCIAL Por mais "tachos" do bem O fim da vida como a conhecemos #MeToo

CULTURA

Universalismo de (alguns) Direitos: imposição cultural?

S AB ER ONDE INOV A R Inês Bastos

"Não quero ser mal interpretada. A Faculdade tem de ser mais do que uma fábrica de estagiários, futuros advogados ou juízes. Não basta haver modernização e certamente a Faculdade não deve limitar-se a “correr” atrás da pura demanda do mercado. O ensino de Direito terá sempre de ser mais do que isso."

Em que tipo de jurista nos queremos tornar? Que espécie de cidadão queremos ser? Estas são as duas ponderações que têm de anteceder qualquer discussão sobre um plano de estudos para a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Um plano de estudos não pode constituir uma realidade imutável, que tomamos como garantida. Se o mundo lá fora está em permanente mudança, se o mercado de trabalho está cada vez mais internacionalizado, modernizado e dinamizado, a Faculdade tem de ser necessariamente a primeira instância onde essa mudança se reflete.

Mudámos de década e o mundo gira à volta da tecnologia. Se o Direito não é mais do que cultura, não é de estranhar que o próprio Direito esteja em transformação.

Numa altura em que o ambiente é o centro das preocupações internacionais, devíamos apostar em setores como o Direito da Energia. Se as grandes empresas procuram afastar-se dos tribunais judiciais, é importante ensinar Arbitragem. Se hoje a riqueza se funda na pessoa e não no património, está na altura de nos voltarmos para a Propriedade Intelectual. Por fim, nada do que aprendermos será verdadeiramente útil sem um domínio suficiente do Direito da Proteção de Dados, que hoje se encontra na base de qualquer discussão e solução jurídica. Basta visitar o website de qualquer uma das grandes sociedades de advogados para perceber onde é que as atenções se concentram e o que vai ser exigido de nós. É natural que, em face das poucas oportunidades que existem para nos debruçarmos sobre estas matérias ao longo da licenciatura, o sentimento típico de um recém- licenciado é de que foi atirado aos lobos. A solução deve passar pela diversificação das cadeiras optativas, para que cada aluno possa construir o seu percurso consoante a sua perspetiva de futuro. Passa pela introdução de cadeiras de caráter internacional, para nos adaptarmos a uma sociedade globalizada e conseguirmos trabalhar no estrangeiro sem nos sentirmos impreparados. Conscientes de que um dos lemas da nossa Faculdade é a “tradição”, faça-se o reparo de que a tradição só deve ser mantida até um ponto ótimo, no qual fomenta e consolida - não prende contra a maré.

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Não quero ser mal interpretada. A Faculdade tem de ser mais do que uma fábrica de estagiários, futuros advogados ou juízes. Não basta haver modernização e certamente a Faculdade não deve limitar-se a “correr” atrás da pura demanda do mercado. O ensino de Direito terá sempre de ser mais do que isso. Se nos orgulhamos de estudar Direito, temos de ser pessoas de Direito. Cabe à Faculdade ajudar a criar cidadãos socialmente conscientes e responsáveis, com um sentido de ética que não alimente a descrença geral que o português tem na Justiça. Aí devem entrar as disciplinas Humanísticas. A Filosofia, para entendermos o Direito para lá da letra da lei. A Sociologia, para compreendermos a interdependência entre o social e o jurídico e pensarmos o Direito para as Pessoas. A Ética, porque o estudo do Direito deve-se refletir nas opções triviais do dia-a-dia. Por fim, as cadeiras Históricas, que têm de parar de ser encaradas como uma obrigação de estudar o que está morto, ultrapassado. Constituem, na verdade, uma oportunidade de perceber o presente e, sendo certo que errar é o destino inevitável do Homem, melhorar as decisões que tomamos no futuro. Há que revalorizar estas disciplinas, reconhecendo-lhes o papel indispensável que integram na formação de qualquer individuo, mas especialmente de um Jurista. Consequentemente, cabe reponderar a sua distribuição ao longo da licenciatura, em vez de limitarmos o seu foco de atuação ao primeiro ano. A Faculdade é uma passagem, mas também é o espaço privilegiado para aprendermos a pensar aberta e criticamente, a lermos para lá das letras gordas dos machetes dos jornais. Quando pensamos num plano de estudos para o presente, temos de ter a consciência de que estamos a formar os indivíduos que representarão a Justiça no futuro, e isso é uma responsabilidade que não podemos encarar levianamente. Em suma, distinguiria dois pontos essenciais quanto a um plano de estudos: dinamização, numa vertente de resposta às necessidades atuais do mercado de trabalho, e consciencialização, para percebermos o que representa estudar Direito e de que modo a ideia de Justiça nos deve guiar.

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DIREITO A O DESPREN- DIMENTO João Moreira da Silva

"Os estudantes de Direito têm o papel natural de aplicar e defender a lei, reformando o sistema, se necessário, para garantir uma maior proteção da comunidade – e não de si próprios. Não será questionável que um estudante de Direito, que se propõe a desempenhar esse mesmo papel, não queira saber de mais ninguém para além dele próprio?"

À medida que os anos do curso de Direito vão avançando, começamos a apercebermo- nos que nem tudo é tão poético como imaginávamos quando entramos na Faculdade. Os sonhos de ajudar a mudar o mundo e defender direitos humanos (ou dos animais, quem sabe) começam a ser substituídos por análises de acórdãos, definições das linhas de parentesco entre dois indivíduos ou pressupostos processuais – sem desprimor para os aficionados das respetivas áreas. Assim, com o passar do tempo, a visão idealista com que entramos na Faculdade vai sendo relegada para segundo plano. No entanto, não devemos crucificar o estudo dos acórdãos, das linhas de parentesco, dos pressupostos e de outras matérias menos “didáticas”. Logicamente que o estudo destas matérias é vital, porque o bom funcionamento do nosso sistema jurídico depende de juristas que as conheçam. Mas o bom funcionamento de um sistema que é deficiente revela as falhas dos seus intervenientes. E todos estes intervenientes terão um ponto em comum – foram estudantes de Direito. Enquanto estudantes de Direito, temos o dever de fazer uma análise crítica do ensino do mesmo. Se, enquanto espectadores da primeira fila, não o fizermos, ninguém o fará por nós. Assim, pretendo analisar dois problemas que considero relevantes no ensino do Direito. Antes, faço um pequeno disclaimer : quando me refiro a ensino do Direito, não me refiro necessariamente a aulas práticas e teóricas, mas ao plano abrangente da Universidade. O primeiro problema do ensino do Direito está, na minha opinião, em fazer do futuro jurista um autêntico robot, programado para colocar de parte as suas motivações em prol de uma visão mecanizada das leis. Esta visão mecanizada surge como uma grande vantagem no estudo das leis – nada melhor que o aluno que, de forma automatizada e isenta de qualquer pensamento crítico, vai decorar as posições doutrinárias do professor regente de forma exímia. Apesar das óbvias vantagens em nos tornarmos robots juristas sem opiniões próprias e isentos de qualquer espírito reivindicativo, penso que não será esta a ambição da maior parte dos meus colegas. O segundo problema prende-se com o culto à individualidade que se vive numa Faculdade de Direito, popularmente conhecido nos corredores como “o colega que não empresta os apontamentos”. O problema é óbvio e todos o reconhecemos, mas não deixo de ver uma grande contradição entre ser estudante de Direito e ser egoísta.

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Para refletir sobre esta contradição, devemos voltar à “estaca zero”, ao idealismo do início do curso que referi no início do texto. Inspirados neste idealismo, com um pouco de ingenuidade à mistura, façamos um raciocínio simples. As leis servem para proteger toda a comunidade – não apenas um indivíduo. Os estudantes de Direito têm o papel natural de aplicar e defender a lei, reformando o sistema, se necessário, para garantir uma maior proteção da comunidade – e não de si próprios. Não será questionável que um estudante de Direito, que se propõe a desempenhar esse mesmo papel, não queira saber de mais ninguém para além dele próprio? Identificados os dois problemas – a tendência para a robotização do estudante e o seu individualismo – cabe refletir sobre os mesmos. Parece lógico que o segundo seja uma consequência direta do primeiro, dado que a progressiva perda de empatia pelo próximo vai dar azo a um crescente egoísmo.

Põe-se a questão: como é que reverte a mecanização e individualismo do estudante de Direito?

Deixo a minha proposta, que vale o que vale – eduque-se para o desprendimento no curso de Direito. Charles de Gaulle afirmava que “a ambição individual é uma paixão infantil”. Apesar do General se referir ao âmbito da política, acredito que devemos transpor esta ideia para o campo do Direito.

Põe-se uma segunda questão: como se educa para o desprendimento num curso de Direito?

Penso que a resposta não seja tão complexa como pode parecer. A educação para o desprendimento no curso Direito passa precisamente por nos cingirmos a ensinar o Direito. A deixar de olhar para as disciplinas como a que “dá mais dinheiro”, a que “tem mais saída” ou a que “arranja mais contactos”. A deixar de fomentar uma visão puramente pragmática do nosso percurso enquanto juristas, que passa por fazer as cadeiras, acabar o curso, fazer 2 anos de estágio na Ordem e começar o trabalho “a sério” – sem nunca nos termos questionado em que medida estamos a ser úteis para a sociedade ao fazê-lo.

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Logicamente que a abstração total da individualidade também não é desejável, mas os objetivos de cada um devem ser conciliados com o altruísmo que o curso de Direito exige. Que sentido faz, no juramento da Ordem dos Advogados, comprometermo-nos a “Defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantidas dos cidadãos e colaborar na administração da justiça”, quando fomos educados a olhar para o nosso próprio umbigo – ou a nossa própria conta bancária? Todos estamos de acordo quanto à importância do jurista, do advogado, do juiz na sociedade – têm um papel preponderante na aplicação, interpretação, proteção e reforma das leis. Mas que sentido faz dar esta responsabilidade a estudantes – nos quais eu me incluo – que não foram ensinados a pensar sobre as mesmas? Ensine-se o desprendimento no Direito. Ensine-se que não é motivo de prestígio receber milhares de euros por sermos peritos em aldrabar o sistema jurídico, por sabermos fazer “ networking ” em determinados meios ou por servir interesses que fragilizam o Estado de Direito. Deve ser motivo de orgulho reconduzir o conhecimento que nos foi dado nesta Faculdade ao longo de 4 anos para sermos úteis para a sociedade, na medida do possível. Não se exige que sejamos todos Santos – apenas que carreguemos sempre nos ombros o peso de estarmos numa posição fundamental para garantir uma sociedade justa.

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Ilustrado por Luka Cencini Grean

QU A NDO C RES C ER (NÃO)

QUERO SER A DVOG A DO José A. P. Santos

"O Direito não me apaixona, não me apaixona cegamente, ao ponto de me fazer esquecer tudo o resto, no entanto não o descarto, pois a vida nem sempre é tão romântica como a gosto de ver e mais tarde ou mais cedo em virtude de fracassos e desilusões pontuais pode encarregar-se de me guiar para um caminho que talvez tivesse - na realidade - sido sempre o meu, o do Direito."

Vivemos hoje num mundo supersónico, num mundo do imediato, do aqui e do agora, num mundo em que nos é exigido tudo. Exigem-me enquanto jovem que decida o que quero fazer nos próximos 50 anos da minha vida, onde quero passar o meu tempo e onde espero fazer dinheiro, muito dinheiro, e eu sinto-me incapaz de responder. Sou questionado quase diariamente sobre o que quero ser quando for grande (se é que o serei um dia), perguntam-mo em família, entre amigos, até desconhecidos o ousam fazer e é já de forma automática que respondo: “Não sei, vamos ver”. Segue-se, então, a questão que me levou a escrever este texto “Então, porquê Direito?”, questão esta que, neste momento me sinto capaz de responder. Nasci numa casa de Advogados, desde pequeno bebo doutrina e casos práticos de forma inconsciente, sempre tive entre as minhas “vocações” (um termo que as conselheiras de orientação gostam de aplicar), eu, gosto de chamar-lhes paixões: as Letras, as Línguas e as Humanidades, as ditas Ciências Humanas. É por isso que não me arrependo, e aconselho cegamente todos os que se revejam nas minhas palavras a seguir o curso de Direito, pois na área de Letras é de longe o curso que mais portas abre, que mais bases nos dá, e é sobretudo um curso que nos oferece algo, que para mim é muito importante: a liberdade de escolha. Com uma licenciatura em Direito posso profissionalizar-me em qualquer área, especializar-me como bem entender, tendo sempre um Porto Seguro, que é o Direito em si. Creio que o Direito nos permite ser fiéis a nós mesmos, permite-me que guarde as minhas paixões e fantasias pessoais quer no plano das Artes quer no plano do Desporto e que não descarte fazer delas vida, bem como áreas que via Mestrado são plenamente acessíveis (Economia, Gestão, Relações Internacionais, Comunicação, Jornalismo, entre outros) tendo sempre, – refiro novamente – uma base académica sólida e conceituada.

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Esta é outra das forças do Direito, e uma razão forte que me leva a aconselhar qualquer estudante de Línguas e Humanidades a seguir Direito: a grandeza do curso e da área. O Direito e quem o estuda é respeitado e tido em consideração em qualquer canto do mundo, é uma imagem de marca, apresentar-me seja onde for enquanto “Estudante de Direito” transmite uma imagem forte e que molda a maneira de ser visto e o trato daquele que nos vê. Apesar deste argumento ser fruto de uma ideia pré-concebida e generalista com a qual discordo, é uma realidade universal e ser-nos-á útil ao longo de toda a vida. Dito isto, hesitando tudo o que quiser hesitar e visitando todas as áreas que queira visitar, posso ao final do dia optar pelo Direito, que continua a ser, e creio será sempre enquanto o Homem for Homem uma área segura e de extrema necessidade.

Hoje, enquanto estudante do 2º ano de licenciatura não me vejo como profissional de Direito, como advogado.

O Direito não me apaixona, não me apaixona cegamente, ao ponto de me fazer esquecer tudo o resto, no entanto não o descarto, pois a vida nem sempre é tão romântica como a gosto de ver e mais tarde ou mais cedo em virtude de fracassos e desilusões pontuais pode encarregar-se de me guiar para um caminho que talvez tivesse - na realidade - sido sempre o meu, o do Direito.

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SER A LUNO D A C LÁSSI CA M A IS DOIS A NOS? SIM! Ana Pereira Coutinho

"O Mestrado em Direito e Ciência Jurídica é a escolha certa não só para quem pretenda prosseguir carreira académica, mas também pertinente para quem queira seguir carreira prática, já que é um mestrado que proporciona diversos instrumentos relevantes que são certamente valorizados no mercado de trabalho..."

Depois de terminar a licenciatura, todos nós nos deparamos com o dilema de saber o que fazer a seguir. Começamos por ponderar se queremos ingressar logo no mercado de trabalho, se optamos por tirar um mestrado, em Portugal ou no estrangeiro, ou até se preferimos fazer um gap year . Temos medo de nos arrependermos mais tarde, por não gostarmos do que vamos fazer a seguir, e as dúvidas parecem não acabar. Após alguma reflexão, optei por tirar o mestrado imediatamente a seguir à licenciatura, muito por força da convicção que tinha sobre o meu gosto pela área na qual queria trabalhar no futuro. Desde o meu terceiro ano de licenciatura que percebi qual era a minha área de eleição, ainda que tantas outras me tenham prendido a atenção ao longo dos quatro anos. Por esse motivo, cheguei à conclusão de que era o momento ideal da minha vida para aprofundar os meus conhecimentos nesse ramo: o Direito Penal. Percebi que tinha acabado a minha licenciatura com 21 anos e que ainda era bastante nova, que esta era a altura ideal para investir na minha educação e formação, para depois conseguir canalizar os meus conhecimentos para a vida profissional que me espera. Quando decidi fazer mestrado, não tive dúvidas sobre qual escolher. Candidatei-me ao Mestrado em Direito e Ciência Jurídica, especialidade em Direito Penal e Ciências Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, por considerar que era o que melhor se enquadrava nos meus interesses. Os alunos dos mestrados da FDUL têm a oportunidade única de aprender mais sobre um ramo do Direito com Professores de um profissionalismo e qualidade técnica indiscutíveis, com uma enorme disponibilidade para nos transmitirem a imensa bagagem de conhecimentos que possuem.

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O Mestrado em Direito e Ciência Jurídica é o mestrado ideal para quem tem um gosto especial pela investigação científica. Os alunos têm a oportunidade de aprofundar os seus conhecimentos numa específica área do Direito, através da investigação realizada ao longo de todo o mestrado, assim como melhorar a capacidade de autonomia e o sentido de responsabilidade, bem como disciplina, skills que sem dúvida serão importantes na vida profissional. O Mestrado em Direito e Ciência Jurídica é composto por dois anos. O primeiro ano é um ano curricular, composto por três unidades curriculares anuais, em que duas se enquadram no ramo do Direito de eleição do aluno, e uma terceira unidade curricular optativa, que pode incidir sobre uma outra área jurídica. As aulas funcionam à base de seminários, nos quais os alunos podem apresentar e debater temas da atualidade e expor aos colegas e Professores temas de investigação, potenciando debates bastante estimulantes entre docentes e discentes. Segue-se a elaboração de relatórios, no final do ano letivo, a cada cadeira, sobre um tema escolhido pelo aluno dentro do programa da unidade curricular em causa. Para além destas três unidades curriculares anuais, está ainda prevista uma unidade curricular semestral de Metodologia de Investigação Científica, com lugar no primeiro semestre, orientada para a aprendizagem da elaboração de trabalhos científicos, tanto no que toca ao conteúdo, como à forma. O Mestrado em Direito e Ciência Jurídica é a escolha certa não só para quem pretenda prosseguir carreira académica, mas também pertinente para quem queira seguir carreira prática, já que é um mestrado que proporciona diversos instrumentos relevantes que são certamente valorizados no mercado de trabalho, desde logo, a capacidade de questionar problemas jurídicos que nos são apresentados ao longo da vida profissional.

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QUEM SE A NUN C I A É O TR ABA LH A DOR -ESTUD A NTE João Marujo

"Quem se anuncia é o trabalhador- estudante: uma espécie de mista de carne de um menu barato; mista porque não sabe bem se é trabalhador ou se é estudante, de carne porque o corpo lhe pesa no final do dia. Encontra-se na fase crítica, a das difíceis decisões, a que tem consequências a longo prazo não imagináveis para quem com ele não partilha a condição: há que dividir a atenção entre quem o espera e quem dele espera."

Na frigideira, tapada pela cobertura de proteção de calor de micro-ondas, a guarnição está mole. As natas, já frias, solidificam por dupla via: o processo químico e a sensação de abandono. A carne, essa, vai ficando dura à medida que se vai lembrando que já devia ter alimentado alguém. A porta abre devagar, percebe-se que houve cuidado com a introdução da chave na fechadura. Quem entra quer ser notado, mas não se quer fazer notar. É a dualidade de critérios de quem chega por último: quer ser esperado, mas odeia fazer esperar. Fá-lo na expectativa que um dia possa ser o primeiro, abrir a porta com estrondo, queimar os dedos enquanto prepara a guarnição, salpicar-se com as natas ainda frescas e vigorosas, sorrir para a carne quando, cortada ao meio, se vê ainda com sangue, num estado mal-passado imposto por quem finalmente passou (por quatro ou mais anos de luta). Na cama, as crianças dormem ainda com a luz de presença, naquela semi-embriaguez de sono que só passa com o aconchego dos cobertores e o conforto de um beijo de até-amanhã. Na divisão ao lado, o sofá sente-se confortável, ocupado por um cônjuge que vai dividindo a atenção entre a televisão, o telefone e o silêncio profundo da expectativa de ouvir ruído - de uma porta, como se as portas fossem causa de alegria, e não quem as abre. Quem se anuncia é o trabalhador-estudante: uma espécie de mista de carne de um menu barato; mista porque não sabe bem se é trabalhador ou se é estudante, de carne porque o corpo lhe pesa no final do dia. Encontra-se na fase crítica, a das difíceis decisões, a que tem consequências a longo prazo não imagináveis para quem com ele não partilha a condição: há que dividir a atenção entre quem o espera e quem dele espera. A primeira, corporizada pelo conceito de família, só pede atenção e dedicação; a segunda, corporizada pelo conceito de escola, só pede o mesmo. Precisava o protagonista de se multiplicar, de ser ele mesmo à potência de dois, de poder ser trabalhador e estudante - não trabalhador ou estudante. E é nesta luta inexorável contra o tempo, que por mais força que faça não estica, não perdoa, não se mostra flexível às súplicas, que vai vivendo, uma dicotomia que lembra Ricardo Reis e Álvaro de Campos, entre a quietude da Família e o frenesim da Academia.

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Tem durante a noite que resolver dois casos práticos: o da incompetência absoluta de um órgão para a prática de um ato administrativo, e o da sua incompetência relativa para ser ele, por inteiro, junto daqueles de quem mais gosta. Opta, na maior parte das vezes, pela primeira. Não o faz por meritocracia ou dedicação exemplar: fá-lo na expectativa de que esta decisão, em concreto, venha a diminuir o número de decisões do mesmo género ou espécie que terá que fazer no futuro. É viver no futuro com um olho no presente. O trabalhador e estudante é sempre economista: não decide sem ponderar, não age sem planear. É conhecedor profundo do conceito de custo de oportunidade, não pela brilhante prestação na cadeira que o ensina, mas pelo conhecimento empírico que desenvolve no quotidiano. Carrega na mão a balança da justiça, que pende quase sempre para a Universidade e suas exigências; e quando assim não faz, quando se distrai e deixa que a Vida se sobreponha à Academia, que os pratos se equilibrem e que o processo seja equitativo, esta não perdoa àquela: não participa, não completa a disciplina, não progride para o ano seguinte. Está constantemente na presença de duas placas tectónicas em tensão para se sobreporem uma à outra; mas quando a primeira se sobrepõe à segunda, esta vem reclamar a sua importância e coloca a Vida novamente no seu devido lugar: o segundo. A narrativa não tem por objetivo criar no leitor pena, comiseração ou qualquer sentimento altruísta para com o paradoxo do trabalhador e estudante; pretende – isso sim - ser uma homenagem aos que se fazem Hércules, que ultrapassam as várias dificuldades de conjugação que um ensino exigente coloca a uma existência tranquila (ou normal), que sacrificam amor e amizades pelo futuro. É também, e talvez principalmente, uma homenagem aos que são sacrificados, tantas vezes esquecidos quando se conta a história de quem os sacrifica. À família, aos amigos, aos jantares e às conversas, aos fins-de-semana e às viagens, à partilha e ao recato, é ao vosso sacrifício - que se consubstancia na nossa ausência - que deixamos o maior agradecimento: não há estrutura sem pilares, e vocês são os nossos. Aos trabalhadores e estudantes, motivação e força: a jornada chegará ao fim e aí, sob o céu limpo do fim de uma aventura difícil, tudo se tornará melhor, e a Vida voltará a estar em primeiro lugar. As queixas serão outras, as dificuldades serão novas, mas deixaremos de ser um híbrido que em nada se especializa.

Até lá, continuemos.

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Ilustrado por Teresa Sousa Pinto

PÁDU A ( C HEG A D A ) João Salazar Braga

"Na minha mochila, levava livros para ler e blocos de notas para escrever. Levava também a minha máquina fotográfica, uma fotografia emoldurada, algum dinheiro e uma camisola para enfrentar um frio que a minha mãe tinha encomendado, mas que não se fazia sentir."

Quando cheguei a Pádua, não cheguei sozinho.

Aquele fim de tarde estava a fazer de fim de setembro.

O Sol, que teimava em largar a mão do céu, prometeu-nos que voltaria no dia seguinte – cumpriu a sua palavra. Todos os intervenientes que possam ter estado naquele fim de tarde estão capazes de admitir que esse dia tinha sido muito quente. O ar, já respirado, fervia e as pessoas que iam passando pelos meus olhos andavam de um lado para o outro cheias de malas e cheias de calor.

O céu estava cor-de-laranja.

Eu não me esqueço das cores do céu, pelo menos tento nunca me esquecer. Há dias mais importantes do que outros e, por isso, há céus mais importantes do que outros. Todos os céus são diferentes porque todos os dias são diferentes. Há céus – tal como os dias – que parecem ser iguais, mas não são: nunca um céu foi uma cópia absoluta de outro. A Natureza não funciona desse modo. Levantei a cabeça e fiquei a estudá-lo, a perceber as suas cores e perguntei-me sobre como é que estaria o céu em Casa, que agora estava muito longe. Rastos de trajetos de avião rasgavam o cor-de-laranja daquele teto e eu perguntei-me de onde é que aqueles aviões teriam vindo ou para onde é que estariam a ir, como se pudesse de alguma forma saber se, dentro daquelas estruturas voadoras, pudesse estar alguém que estivesse na mesma situação do que eu: a chegar a uma cidade nova, no final de um dia inteiro de viagem, com um bilhete de comboio esquecido no bolso da camisa, com gotas de suor a escorregar pela cara e à procura do caminho para a praça da estação. Eu não estava sozinho. Neste momento, também não estou sozinho, apesar de estar apenas eu neste quarto, onde agora escrevo, numa tentativa de desenhar com palavras os momentos iniciais dessa jornada que vivi.

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Uma pessoa nunca está verdadeiramente sozinha, ainda que, por vezes, se possa sentir só. Eu senti-me só naquele fim de tarde, mas não me senti sozinho. Eu nunca estive sozinho na minha vida porque eu estive sempre comigo. Todos os dias acordei e todos os dias eu estive comigo, ao meu lado. Outros dias, como no dia desta chegada, senti- me só porque, realmente, tinha chegado àquela estação de comboios sem mais ninguém, sem uma única pessoa que eu pudesse considerar minha conhecida.

Aqui, nesta frase, claro que não conto com os outros passageiros do comboio.

(As pessoas têm medo de estar sozinhas. E as pessoas têm medo de mostrar que estão sozinhas. Sempre foi assim, mas hoje fico com a ideia de que este medo está cada vez mais intenso. E eu não consigo perceber porquê. Tento, mas não consigo. Hoje, parece que quem aparece em qualquer lado que seja «desacompanhado», tem um problema – e dos graves.)

Naquele dia, sei que não estava sozinho até porque, ao meu lado, levava duas grandes malas e, nas minhas costas também suadas, uma mochila.

Posso levar tanta coisa na minha mochila – a minha vida inteira. (Só não levava o que mais necessitava naquele preciso momento: água.) Na minha mochila, levava livros para ler e blocos de notas para escrever. Levava também a minha máquina fotográfica, uma fotografia emoldurada, algum dinheiro e uma camisola para enfrentar um frio que a minha mãe tinha encomendado, mas que não se fazia sentir.

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INTER C ÂM B IO EM M ACA U Maria Inês Morais

"Fazendo o balanço geral de toda esta experiência, o programa de intercâmbio em Macau enriqueceu- me em variados aspetos. Conheci novos países, pessoas e culturas. A clássica frase que nos é constantemente dita ao longo da nossa vida de que é importante “sair da nossa zona de conforto” ganha outros contornos. Qualquer programa de Erasmus ou de Intercâmbio Internacional é passível de ter este efeito."

Macau é como uma bolha de sabão.

Esta metáfora pode parecer descabida, mas garanto que transmite exatamente a sensação de viver do outro lado do mundo, num local tão especial como este. Em pleno continente Asiático com constantes sinais da presença de Portugal, desde os azulejos, à calçada, restaurantes e cafés portugueses é extremamente fácil sentirmo- nos perto de casa. Escrever um testemunho relativamente sucinto sobre o meu período de intercâmbio é sem dúvida alguma um desafio pela quantidade de aventuras, dificuldades e de momentos inesquecíveis pelo que, tentarei focar-me naquelas que são as informações mais relevantes e úteis. É impossível falar de Macau sem falar da Ásia em geral. É um continente de “tirar a respiração”, literalmente. Cheguei no final de julho porque tinha decidido que antes das aulas começarem tinha de viajar tanto quanto me fosse possível. Nessa época do ano o clima é impossível: os constantes 48 graus de sensação térmica, a humidade e a ocasional, mas torrencial chuva constituem uma experiência peculiar difícil de transmitir a quem nunca teve a oportunidade de a experimentar. A partir daí o clima torna-se perfeitamente tolerável, a humidade baixa e ficam os nossos dias quentes de verão numa altura em que em Portugal toda a gente começa a usar casacos, cachecóis e botas para o inverno. A cultura e a língua podem, à primeira vista, constituir uma barreira na Ásia. Com exceção dos sítios mais turísticos, a comunicação tem de ser através de mímica porque o inglês não é um ponto forte por aqueles lados. Se estás a pensar ir para Macau, as idas ao supermercado, a restaurantes e qualquer outro tipo de interação com pessoas locais vão tornar-se numa nova aventura que traz imensas histórias para contar. É bastante comum que insistam em falar contigo na sua língua e tu, eventualmente, perdes a força de vontade de te quereres fazer entender e começas a responder em português. O mais fascinante disto tudo é que, no final do dia sempre consegui comprar aquilo que precisava e chegar a todo o lado, é mesmo verdade que quando as pessoas se querem entender, encontram uma maneira.

Viagens. Este costuma ser o tópico que mais interessa a quem me pergunta como foi Macau.

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Na Ásia o preço mais elevado que se paga em viagens é o da deslocação até lá. A partir daí é possível movimentarmo-nos entre países de forma relativamente barata.

Em 5 meses passei por locais onde nunca imaginei que poderia vir a estar. Comecei pelo Vietnam, o meu país preferido por toda a beleza intocada e pela simpatia das pessoas, talvez por ter sido o primeiro contacto com este continente me tenha influenciado tanto. Passei pelo Laos, um país espiritual e com uma energia incrível. No Camboja, os templos em Angkor Batht são simplesmente estrondosos e inacreditáveis. Na Tailândia, as famosas Phi Phi Islands com água translúcida e praias temáticas como a Monkey Beach são um pequeno paraíso na terra, apesar de não ter tido a sorte de as visitar na melhor altura do ano como em janeiro, por exemplo que é a época alta de viagens na Ásia e aí as ilhas têm muito mais movimento e eventos a acontecer. Já em Macau, sem aulas à sexta-feira, era fácil, de quinta a segunda ir conhecer novos sítios. Com as amizades que se fazem vêm também novos companheiros de viagem. Duas semanas depois de chegar oficialmente a Macau fui à Coreia do Sul, a Seul, uma cidade extremamente moderna e bonita na qual nos perdíamos na beleza de todas as ruas. Singapura foi outro dos pontos altos desta viagem, para mim, é como um local do futuro. Quanto à China em particular tive oportunidade de visitar Guilin, uma cidade pequena, mas muito conhecida pelos seus grandes e tradicionais campos de arroz, com paisagens maravilhosas e onde o facto de sermos ocidentais era visto como uma raridade; pediam-nos constantemente para tirar fotografias e notava-se uma grande curiosidade das pessoas pelas nossas diferenças culturais. Não posso falar de viagens sem falar de Pequim, o outro local da China que consegui visitar. É uma cidade gigantesca, com tanta coisa para ver e dias demasiado pequenos para o conseguir fazer, mas onde não faltou a visita obrigatória à Grande Muralha da China, uma experiência inacreditável.

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As aulas, os professores e o ambiente na faculdade são um grande ponto forte de Macau.

As aulas são lecionadas em português, em regime pós-laboral, por professores portugueses que se preocupam com os alunos e que estão constantemente disponíveis para nos ajudar. O facto de não existir avaliação contínua e de a classificação resultar exclusivamente de um exame final que valerá 100% da nota poderia ser visto como uma desvantagem tendo em conta que é o oposto daquilo a que estamos habituados na nossa faculdade. No entanto, com o acompanhamento e preparação constantes, este tipo de avaliação torna-se acessível e não nos prejudica. É perfeitamente possível voltar de Macau com equivalência às 5 cadeiras que integram o semestre. Fazendo o balanço geral de toda esta experiência, o programa de intercâmbio em Macau enriqueceu-me em variados aspetos. Conheci novos países, pessoas e culturas. A clássica frase que nos é constantemente dita ao longo da nossa vida de que é importante “sair da nossa zona de conforto” ganha outros contornos. Qualquer programa de Erasmus ou de Intercâmbio Internacional é passível de ter este efeito. Optei precisamente por Macau por ter considerado ser este o local onde esses efeitos seriam levados ao limite e me permitiriam explorar ao máximo esta “nova zona de conforto”.

Foi uma oportunidade única e inesquecível que me acompanhará para sempre ao longo da minha vida.

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POR M A IS " T AC HOS " DO B EM Rafaela Figueiredo Lima

"Chamemos-lhe “tachos” do bem: cargos e funções acumuladas por aqueles que dedicam o seu tempo a causas sociais e querem ser parte da solução. O meu desejo é que sejamos cada vez mais e cada vez mais envolvidos. A mudança está ao nosso alcance."

Vivemos num mundo em que cada um de nós tece com as suas próprias agulhas de indiferença um manto da invisibilidade, com que subtilmente se cobrem os problemas sociais que teimam em cruzar o nosso caminho. Olhamos para o lado, arranjamos desculpas e razões de ser - algumas delas perfeitamente válidas - e apontamos culpados para a desgraça alheia, garantindo assim que sacudimos a água do nosso capote privilegiado. Ao longo dos últimos anos, tive oportunidade de conhecer de perto, de tu para tu, a realidade de várias pessoas que, sendo em tudo iguais a mim, viviam e vivem em condições manifestamente inferiores às minhas (e às tuas também, provavelmente). Pessoas que vivem na rua, ou em barracas, jovens que crescem em bairros sociais, aqui ao lado, tão perto das nossas faculdades, e de quem poucas pessoas esperam um futuro brilhante, um futuro que passe, por exemplo, pela prossecução dos estudos para o ensino superior. Surpreendentemente, desde os mais novos, com quem pude estudar, aprender, sonhar novos horizontes, aos mais velhos, incluindo nestes, um senhor que me contava que noutros tempos, mais áureos e luminosos, tinha estudado na Faculdade de Direito de Lisboa, não encontrei coitados nem pobrezinhos. Estranho não é? Em tantas experiências (e tão ricas para mim!), onde tive a oportunidade de adquirir novas competências, de compreender uma realidade diferente, de analisar este mundo noutra perspetiva, só encontrei pessoas. Pessoas iguais a mim.

Foi fundamental para mim entender qual é o papel de um voluntário e qual é o meu papel.

Compreendi que há situações que podem ser melhoradas, outras até resolvidas e para as quais posso contribuir e outras que estão fora do meu alcance. Foi absolutamente construtivo reconhecer com toda a humildade que um voluntário não é - de todo - um super herói a salvar necessitados. Não somos seres com qualquer habilidade especial ou extraordinária: somos só pessoas que nos apercebemos que não podemos viver na indiferença, fechar os olhos ou apontar para o outro lado. E é esse sentimento que me faz organizar o meu estudo, a minha vida e gerir as minhas prioridades reservando tempo para investir em projetos sociais que fazem a diferença.

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O voluntariado, à semelhança do Direito, existe para resolver problemas. Surge como solução concreta para um problema específico, que depois de ser identificado e de ser delineada uma estratégia, pode ser resolvido através do tempo, das capacidades, do compromisso e do investimento pessoal de pessoas desprendidas, que querem intervir e ser parte da solução. O fim último de um projeto de voluntariado deve ser a sua extinção: tal significaria que os objetivos foram cumpridos e que o problema (seja ele falta de apoio escolar, pessoas a viver em condições precárias ou qualquer outro!) deixou de existir. Claro está, há um longo caminho a percorrer até se chegar a esta situação, em alguns casos utópica, e para tal, seria necessária uma maior mobilização da comunidade, em particular de universitários, que estão tendencialmente mais disponíveis nesta fase da sua vida, para integrarem projetos de voluntariado. "Porém, o que é que eu ganho com isso?": é uma pergunta recorrente para qualquer voluntário que invista uma parte do seu tempo livre neste tipo de atividades. Ao longo do tempo e em colaboração com várias associações já assumi diferentes funções, das mais simples às mais complexas, desde distribuir bolos numa linha de montagem a pessoas sem possibilidade de providenciarem a sua comida, a animar e integrar diferentes grupos de jovens provenientes dos mais variados contextos sociais, a formar e recrutar novos voluntários, até apresentar o projeto de uma das associações a que pertenço a grandes empresas. No desempenho de todas estas tarefas encontrei oportunidade para aprender e ganhar novas competências: comunicacionais, relacionais, de autogestão e organização. Pude presenciar e fazer parte de realidades completamente distintas daquela que me rodeia diariamente, pude ganhar consciência e ver novos mundos neste mundo. A resposta à pergunta frequente resume-se no facto de o voluntariado ser uma experiência absolutamente "win-win", de onde cada um retira tanto quanto investe, no mínimo em quantidades proporcionais, muitas vezes em quantidades exponenciais. Ao longo do tempo e do meu envolvimento em diferentes organizações voluntárias pude constatar que, na esmagadora maioria dos casos, quem faz voluntariado não desempenha apenas uma tarefa, apenas numa associação. Os voluntários que conheço estão associados a uma panóplia de causas e contribuem em diferentes missões! Existe um fenómeno – extremamente positivo – de acumulação de funções, de envolvimento em múltiplos projetos e de criação de uma sinergia que permite ir corrigindo desigualdades e construindo uma sociedade e um mundo mais justo. Chamemos-lhe “tachos” do bem: cargos e funções acumuladas por aqueles que dedicam o seu tempo a causas sociais e querem ser parte da solução. O meu desejo é que sejamos cada vez mais e cada vez mais envolvidos. A mudança está ao nosso alcance. Nós, juristas, existimos para resolver problemas, não é? Há muitos à nossa volta, vamos a isso.

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O FIM D A VID A C OMO A C ONHE-

C EMOS Raquel Moreiras

"A crise climática é latente e representa um complexo problema político e de justiça social. Na sua natureza mais ampla, o meio ambiente transcende as fronteiras criadas pelo ser humano e é impreterível mencionar que os países com menos responsabilidade nas emissões de gases de efeito de estufa, como os países do Sul Global, são os que, neste momento, enfrentam as consequências mais diretas destas mudanças climáticas."

De acordo com David M. Eagleman, há três mortes. A primeira é quando o corpo deixa de funcionar, a segunda quando esse mesmo corpo é resignado à sepultura. A terceira, por sua vez, é aquele momento, algures no futuro, quando o nosso nome é dito pela última vez. Qual será a sílaba que ditará o fim da existência humana? Um pouco por todo o lado, o burburinho cresce. As alterações climáticas afirmam-se, cada vez mais, como a maior ameaça à sobrevivência da nossa espécie, e, lentamente, esta temática invadiu em força o debate popular, as redes sociais e meios de comunicação, a agenda política e social. Tanto parece ser o alarido acerca da crise ambiental e da tragédia iminente que paira sobre a vida como a conhecemos que este foco e preocupação quase parecem recentes, o ambientalismo uma nova moda. Porém, o aquecimento global certamente não começou com a notoriedade de Greta Thunberg e estes conceitos em nada nos são novos. As alterações climáticas estão diretamente ligadas ao Efeito de Estufa, que é um processo natural que permite que o Planeta Terra, pelo menos por enquanto, tenha a temperatura ideal para ser habitável pelos seres humanos. Por sua vez, os Gases de Efeito de Estufa (G.E.E), tais como o dióxido de carbono, o metano, o dióxido de enxofre, ou outros que existem em menor dimensão, estão naturalmente presentes na atmosfera porque advêm de fenómenos naturais, como a erupção de vulcões. Estes gases não só estão diretamente ligados ao aquecimento global como são a sua principal origem: quanto maiores as emissões de gases de efeito de estufa na atmosfera, maior a temperatura média global e mais extremas são as mudanças a nível climático. Cabe, assim, referir que estas mudanças no clima e o aquecimento do planeta são habituais e que não é a primeira vez que o clima se altera. Desde que há registos, o nosso planeta viu acontecer cinco extinções em massa, e, no mínimo, quatro delas aconteceram devido às alterações climáticas. A mais notória ocorreu há cerca de 250 milhões de anos, quando se deu um aumento de 5ºC na temperatura, despoletado pelo aumento da presença de dióxido de carbono na atmosfera, o que, consequentemente, acelerou a libertação de metano. Este incremento a nível de temperatura média global resultou no dizimar de aproximadamente 96% de toda a vida na Terra, subsistindo apenas um resquício. Para além disso, ainda que se baseiem também em fenómenos naturais, inerentes ao nosso planeta e à sua atmosfera, a velocidade e intensidade do aquecimento a que estamos hoje expostos são inéditas à História. Cientistas acreditam estarmos, hoje, cada vez mais perto de testemunhar, em primeira mão, a sexta extinção em massa: a nossa.

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O Painel Internacional para as Alterações Climáticas (IPCC), o órgão de referência para o estado das mudanças climáticas e ambientais, indica, no seu mais recente relatório, que a temperatura da Terra subiu mais de 1ºC porque as emissões de gases de efeito de estufa aumentaram mais de 40% desde o Período Pré-Industrial. A previsão é para que aumente entre 1ºC e 6ºC até 2100. Neste contexto, o Acordo de Paris surge com a imposição de uma barreira de segurança: visa que não se ultrapasse um aumento de 2ºC na atmosfera até 2100 e que sejam aplicados todos os esforços para que esse mesmo aumento não ultrapasse os 1,5ºC. Esta é a nossa melhor opção, e indica que não podemos subir as emissões de gases de efeito de estufa mais do que 0,5ºC se queremos evitar um total colapso climático. Para que este objetivo se concretize, é imperativo reduzir as emissões globais de gases de efeito de estufa até 2030 em 50%. Todavia, a maior parte dos países estão em incumprimento com as metas estabelecidas e este acordo vinculativo aparenta ser meramente indicativo. Graças a isso, o relatório do IPCC aponta para um aumento de 4ºC na temperatura média global no mesmo prazo, caso continuemos ao mesmo ritmo, o que terá consequências catastróficas para a vida como a conhecemos. Em adição, este relatório demonstra que os principais processos que atualmente estão no cerne destas emissões de gases e, concludentemente, agravam o aquecimento global, têm a sua origem na atividade humana. Porém, esta correlação direta entre a ação humana e o aquecimento global também não é novidade. Há muitos anos que ouvimos falar desta problemática e do quão necessário é cuidar do meio ambiente, de como pequenas mudanças no nosso estilo de vida poderão contribuir para um bem maior que todos almejamos: uma vida sustentável no nosso planeta. Não deitamos lixo para o chão, fazemos a reciclagem, plantamos uma árvore, e, acima de tudo, acreditamos estar a fazer a nossa parte para contribuir para um desenvolvimento sustentável e um planeta melhor. No entanto, a ciência discorda. Ainda que uma mudança a nível de hábitos individuais seja louvável, por mais ínfima que seja, a verdade é que não é suficiente. Já em 2007, o mesmo relatório do IPCC veio apontar a extracção de recursos materiais, a queima de combustíveis fósseis (para sectores como transportes, produção de electricidade, manutenção de edifícios, indústria e habitação), a agro-pecuária e utilização de solos intensiva, e ainda incêndios e desflorestação como razões primordiais deste aumento de emissões sem precedentes. Na verdade, a espécie humana nunca presenciou condições semelhantes.

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Os dez anos mais quentes de que há registo aconteceram nos últimos quinze anos, os maiores sumidouros de gases de efeito de estufa (como a Amazónia) estão a desaparecer, o nível de água a subir e cada vez se tornam mais frequentes fenómenos climáticos extremos, como secas ou cheias, que causam o desalojamento e morte de milhares de pessoas. As alterações climáticas não são uma memória do passado, nem uma eventualidade do futuro: são uma realidade do presente. A crise climática é latente e representa um complexo problema político e de justiça social. Na sua natureza mais ampla, o meio ambiente transcende as fronteiras criadas pelo ser humano e é impreterível mencionar que os países com menos responsabilidade nas emissões de gases de efeito de estufa, como os países do Sul Global, são os que, neste momento, enfrentam as consequências mais diretas destas mudanças climáticas. Enquanto isso, os países do Norte Global têm uma responsabilidade histórica face à contribuição para estas emissões e são os menos impactados por elas. Naturalmente, os efeitos desastrosos das alterações climáticas no Norte Global vão aumentando paulatinamente, e, mesmo aí, será sempre a camada mais pobre, discriminada e vulnerável da sociedade, mais exposta às condições naturais e com menos acesso àquelas que deviam ser condições dignas de vida, que vai sofrer de forma mais gritante. O extremar das condições ambientais resulta, inevitavelmente, na intensificação das desigualdades sociais, e essa injustiça social e climática é evidente quando aqueles que menos contribuem para o desastre, e que vivem em zonas mais pobres e menos desenvolvidas, são os mais afetados. Assim, ainda que estas assimetrias estejam tão presentes, esta injustiça não pode mais ser ignorada pois este é um problema que, progressivamente, atingirá toda a população do planeta. Por essa razão, é essencial a colaboração e solidariedade entre países da União Europeia, entre a União Europeia e o resto mundo, entre países do Norte Global e do Sul Global. Acima de tudo, tem de haver lugar para ação solidária internacional. Ainda que a estratégia dinâmica europeia, nas décadas de 70 e 80, tenha dado especial atenção a questões ambientais tradicionais, atualmente, é necessária uma mudança de abordagem, para que, após quatro décadas de políticas europeias e nacionais cuja aplicação é problemática, os desafios ambientais sejam encarados com a seriedade que exigem e as vantagens desta legislação sejam sentidas por todos e todas. As políticas ambientais não se podem cingir apenas ao ambiente lato sensu. A ação política ambiental tem de ser abrangente e multifacetada e obriga a intervenção nos vários sectores da sociedade, como na economia, na educação, na saúde ou mesmo na própria democracia. Carecemos de encarar que as raízes desta árvore se espalham e entranham em todos os aspetos das nossas vidas.

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Face à falta de uma ação governamental a nível internacional que tenha em conta a complexidade e as várias dimensões da luta por justiça climática e contra as alterações climáticas, surge o movimento internacional Fridays for Future , e, inserida nesse contexto, há pouco mais de um ano atrás, Greve Climática Estudantil, em Portugal. Este é um movimento estudantil, político, apartidário e pacífico que começou com conversas de poucos e cresceu para trazer às ruas milhares de estudantes por todo o país nas greves climáticas. Enquanto estudantes, encontramo-nos numa posição diferente da do resto da sociedade civil e das gerações que nos antecedem. O nosso futuro está em risco e o choque e a urgência de resposta são assoberbantes. Os estudantes fazem greve, ao invés de apenas manifestações ou sensibilização, não só para romper com a normalidade, mas também para marcar uma posição. O facto é que esta disrupção nunca será maior ou mais grave do que o colapso climático e o que releva não é o ato intrínseco de fazer greve, e sim a consciencialização e mobilização das massas. Impulsionando eficazmente a crescente pressão política, esta ação legal e não violenta pretende que haja uma tomada de posição governamental para que a luta contra as alterações climáticas seja o primeiro ponto na agenda, para que se dê verdadeiramente prioridade à resolução da crise que não só ameaça o direito à vida mas também a própria continuidade da espécie humana. Reivindicando, acima de tudo, justiça climática em toda a sua dimensão, a Greve Climática Estudantil apresenta um Manifesto e exigências com o objetivo de que sejam tomadas medidas que permitam pôr em prática uma transição energética justa e transformativa e que esta mudança a nível sistémico inclua todos e todas num diálogo honesto, aberto e produtivo que honre os valores da nossa democracia. De uma coisa os estudantes que fazem greve pelo clima estão cientes: o clima sempre mudou e continuará a mudar. O planeta Terra existiu durante milhares de milhões de anos antes dos seres humanos e continuará a existir milhares de milhões de anos depois. O planeta não se interessa por nós, esse papel é nosso. Esse fardo de lutar pelo direito à vida, carregamo-lo sozinhos. Há que escolher fazer ouvir a nossa voz, mesmo que seja o último suspiro de uma espécie. A luta contra as alterações climáticas continuará e os estudantes estão onde sempre estiveram e deveriam estar: na vanguarda.

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